terça-feira, julho 28, 2015

A Trilogia da Escuridão + The Strain

Quando um voo da Regis Airlines, procedente de Berlim, se prepara para pousar no aeroporto internacional John F. Kennedy, em Nova York, não parece haver razão alguma para imaginar que algo possa estar errado. A enorme aeronave toca o solo em segurança e no horário previsto. Porém, quando seus motores desligam, o mesmo acontece com todas as luzes a bordo, e, o que é pior, a tripulação deixa de responder às insistentes tentativas de comunicação por parte da torre de controle do aeroporto. E há os passageiros, que normalmente ficam num frenesi para desembarcar assim que o avião aterrissa, mas que, no presente caso, parecem estar muito quietos… Quietos demais para ser um bom sinal. A primeira coisa em que todos pensam, claro, é numa ação terrorista, possivelmente com uso de armas químicas ou biológicas. Para lidar com a possível presença de patógenos desconhecidos, é chamada a equipe do Centro de Controle de Doenças, liderada pelo Dr. Ephraim Goodweather, também coordenador do Projeto Canário, cuja função é manter vigilância constante contra ameaças de epidemias. Quando Ephraim ("Eph" para os amigos) e sua colega, a Dra. Nora Martinez, ambos pesadamente protegidos contra qualquer contágio, entram no avião para investigar, a cena que encontram é atordoante. Duzentas e seis pessoas, entre passageiros e tripulação, estão aparentemente mortas, sem sinal de violência, e, se houve infecção, o agente foi algo diferente de tudo o que os dois experientes epidemiologistas já viram. Com o tempo, quatro pessoas – três passageiros e o comandante – despertam, mas nenhuma delas consegue dizer o que aconteceu no voo, e nem mesmo acrescentar qualquer informação que lance alguma luz sobre a estranheza do caso.

A investigação conduzida pelas autoridades encarregadas do tráfego aéreo só encontra um objeto suspeito, ou, no mínimo, estranho a bordo do avião: uma enorme caixa retangular de madeira de lei, toda coberta de intrincadas figuras entalhadas representando morte e sofrimento. A caixa dá a ideia de um esquife, mas tem mais de dois metros e meio de comprimento, e, em vez de uma simples tampa, possui portas duplas, à maneira de um guarda-roupa, por assim dizer. Quando é aberta, descobre-se que possui um trinco pelo lado de dentro. No mais, a caixa contém apenas terra. O inacreditável é que ela não consta no manifesto de bagagem, o que não faz nenhum sentido: em tempos pós-Onze de Setembro, deveria ser impossível embarcar com carga não declarada em qualquer voo com destino aos Estados Unidos, e ainda mais um objeto desse tamanho. Eph deseja submeter a caixa a mais análises, assim como os corpos das vítimas e os quatro sobreviventes, que, nem é preciso dizer, deverão ficar sob rigorosa quarentena até segunda ordem – mas não consegue que nenhuma dessas providências seja tomada. A caixa desaparece misteriosamente, apesar de estar sendo mantida em área de acesso restrito, e um dos sobreviventes é uma advogada arrogante e (infelizmente) com "contatos importantes", que consegue que ela e os outros sejam liberados, solenemente passando por cima das normas de segurança médica. Quanto ao exame dos corpos, ele bem que começa a ser feito, mas os procedimentos são interrompidos de forma bizarra, quando os supostos mortos começam a levantar das mesas de autópsia e a atacar quem encontram pela frente, usando novos e horrendos órgãos que parecem ter desenvolvido durante o período de latência que foi confundido com morte.

O agente é, sem dúvida, um vírus, e, como todo vírus, tem um único objetivo na existência: infectar seres vivos, para obrigar suas células a funcionar como fábricas, produzindo o maior número possível de novos vírus. Isso mesmo: um vírus só existe para se replicar. Ele não faz mais nada. Não é capaz de mais nada. Sob esse aspecto, como dissemos, o vírus em questão é igual a qualquer outro… Em tudo o mais, porém, é horrivelmente único. Ele "reescreve" o código genético do organismo infectado, causando transformações físicas para tornar o hospedeiro mais útil aos "interesses" do vírus. Os órgãos internos secam e atrofiam, já que a maior parte das funções que realizavam não são mais necessárias à nova criatura. Na garganta, desenvolve-se uma espécie de tentáculo muscular, que fica recolhido, talvez enrolado quando em repouso, mas que, esticado, chega a medir até um metro e oitenta de comprimento, terminando num ferrão. A criatura usa o tentáculo como se fosse um chicote para subjugar a presa; feito isso, crava o ferrão para sugar o sangue – e quem é sugado fica infectado, de modo que o processo recomeça.

A última parte lembra algo? Não é mera coincidência. Há um homem em Nova York que conhece tanto as antigas lendas quanto a realidade por trás delas. Abraham Setrakian, um judeu de origem armênia, mas criado na Romênia, é proprietário de uma loja de penhores no Harlem, mas já foi professor de literatura e folclore eslavos na universidade de Viena, e teve seu primeiro contato com a praga vampírica mais de 60 anos antes, quando era prisioneiro dos alemães em Treblinka, na Polônia. Embora Treblinka fosse um campo de extermínio, Setrakian, como outros prisioneiros jovens e fortes, foi mantido vivo, em caráter temporário, para que o Terceiro Reich pudesse se beneficiar de sua força de trabalho. Foi graças a essa prorrogação de vida que ele teve a chance de aproveitar o caos que se abateu sobre o campo por ocasião de um ataque do exército russo, e escapar. Antes de sua fuga, contudo, o jovem Abraham testemunhou um horror ainda maior que as atrocidades dos nazistas, que faziam parte do cotidiano do lugar. Escondida nas sombras da noite, uma criatura misteriosa, dotada de força e velocidade impossíveis, esgueirava-se pelos barracões que serviam de alojamento aos prisioneiros, alimentando-se dos homens adormecidos, e, o que é pior, com a conivência do comandante do campo – Abraham tem certeza desse detalhe, pois foi ele quem construiu e entalhou a caixa, por ordem do comandante e para uma finalidade que não é difícil imaginar. O oficial nazista permitia a esse ser fartar-se do sangue dos prisioneiros – que seriam mortos de qualquer forma – e lhe oferecia abrigo, em troca… do quê? A busca da resposta para essa pergunta, do conhecimento da verdadeira natureza da criatura, e de uma maneira de destruí-la, viriam a tornar-se a razão da vida de Setrakian durante as décadas seguintes. Agora ele está velho e sofrendo do coração, mas, se seu vigor físico já não é igual ao de outros tempos, sua coragem continua a mesma, e sua mente está mais aguçada que nunca.

Embora seja um folclorista por formação, Setrakian não negligenciou o que a ciência tinha a contribuir durante seus longos anos de pesquisas e investigações. Ele já sabe, por exemplo, que o que transforma seres humanos em vampiros é um vírus, não uma maldição ou qualquer outra coisa sobrenatural. Descobriu também que o vetor da praga é um pequeno verme, com menos de cinco centímetros de comprimento e espessura pouco maior que a de um fio de cabelo, e com uma habilidade extraordinária para perfurar a pele humana: se você tiver contato físico com um desses, em segundos ele estará na sua corrente sanguínea, e então, nada mais poderá ser feito para salvá-lo. O velho professor apurou, ainda, que a criatura que ele viu em Treblinka era um vampiro-mestre, algum tipo de consciência antiga e maligna, capaz de trocar de corpo ao longo do tempo – o que o faz praticamente imortal – e que controla o contágio do vírus para servir a seus próprios planos. Os vampiros comuns são seres apenas semi-inteligentes, capazes de pouca coisa além de ir atrás de sangue e espalhar a praga, mas o Mestre pode, quando assim deseja, transformar certos humanos escolhidos em uma classe superior de vampiros, mais espertos e poderosos, com capacidade de controlar seus instintos e lembrança total de suas vidas anteriores. Esses, ele reserva para serem seus servidores diretos.


Todo esse conhecimento acumulado por Setrakian, bem como sua impressionante coleção de armas e livros, irá mostrar-se de importância vital para o pequeno grupo dos que irão opor-se aos planos do Mestre a fim de tentar evitar um "apocalipse vampiro" de proporções mundiais. Desse grupo fazem parte Eph e Nora, que por meios tortuosos vêm a conhecer o professor e a somar forças com ele, já que, no fim das contas, todos têm o mesmo objetivo, embora discordem sobre quem recrutou quem para sua causa. Aos três, junta-se eventualmente um sujeito de nome Vasiliy Fet, um filho de imigrantes russos que trabalha para a secretaria municipal de saúde como exterminador de pragas, sendo os ratos sua especialidade. Graças a sua experiência profissional, Vasiliy é o primeiro a perceber que, sob certos aspectos, os vampiros agem de forma parecida à dos roedores. Além disso, ele pensa de forma fria, desprovida de sentimentalismo. Eph e Nora, ao menos no início, sentem uma compreensível hesitação em situações que exigem a eliminação física de vampiros, porque não conseguem deixar de pensar neles como os seres humanos que já foram, e pelos quais eles, como médicos, juraram zelar. Já para Vasiliy, a partir do momento em que alguém é infectado, passa a ser nada mais que um veículo disseminador de doença, assim como os ratos – e deve ser tratado tal como eles. Essa atitude, aprovada por Setrakian, causa horror e repulsa aos outros dois, o que abala a união do grupo ― e isso só pode ser bom para o Mestre… Porém, muitas reviravoltas ainda terão lugar antes do fim.

E, como se a situação já não fosse desesperadora o suficiente, existem outras forças e outros interesses em ação. Um tal Eldritch Palmer (haveria algum paralelo com Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, de Philip K. Dick? Hum…), um dos homens mais ricos do mundo, está agindo em parceria com o Mestre. Para começar, foi graças a ele que o grande vampiro conseguiu transpor o oceano para chegar da Europa aos Estados Unidos ― pois, embora os vampiros desta história tenham muitas diferenças em relação aos vampiros clássicos, também possuem semelhanças, e uma delas é a incapacidade de atravessar água em movimento, a não ser com a ajuda de humanos; qual seria a explicação científica para isso, não se sabe (no terceiro volume é oferecida uma explicação mítica). Palmer é um homem poderoso em todos os sentidos, exceto o físico: sempre teve uma constituição débil e uma saúde frágil. Já tem certa idade, uma idade à qual um homem comum com os mesmos problemas dificilmente teria chegado; só conseguiu manter-se vivo graças ao fato de ter dinheiro para recorrer sempre aos mais modernos tratamentos médicos, e ainda não acha que tenha vivido o suficiente. Na verdade, ele almeja a imortalidade, que o Mestre já ofereceu a alguns humanos antes: Palmer quer ser transformado num daqueles vampiros superiores, com memória e inteligência, e assim seguir vivendo indefinidamente. Em troca, providenciou a viagem do Mestre (com pressões ou subornos às pessoas certas, conseguiu que a enorme caixa fosse embarcada naquele voo, sem registros e sem perguntas), e agora usa sua influência junto à imprensa numa maciça campanha de desinformação, para evitar que o público em geral fique sabendo o que realmente está acontecendo. Nisso, a incredulidade teimosa que é sempre a reação da maioria diante do insólito é uma grande aliada: a TV e os jornais falam em “tumultos”, "saques", uma onda de desaparecimentos, e todo tipo de perturbação da ordem, mas sem nunca revelar o que há por trás de todo esse caos. Boatos circulam, é claro, mas as pessoas preferem acreditar no que conhecem. Vampiros? Quem acreditaria nessa "bobagem"? A maior parte das pessoas vai sempre se obstinar em fechar os olhos à realidade, se ela for muito diferente daquilo que estão acostumadas a ver como "realidade".

Escrevi acima que os vampiros da Trilogia da Escuridão têm diferenças e também semelhanças com os vampiros clássicos. Pois outra semelhança, além da questão da água corrente, é a velha crença segundo a qual um vampiro recém-transformado irá atrás, em primeiro lugar, de seus familiares e amigos – daqueles que ele amou em vida. Essa crença, infelizmente, é verdadeira. Ao longo do primeiro volume, Noturno, enquanto o mundo ainda mantém uma certa aparência de normalidade, acompanhamos a disputa entre Eph Goodweather e sua ex-esposa, Kelly, pela guarda do filho de onze anos, Zack. Isso pode parecer apenas um recurso para fazer de Eph um personagem mais complexo, dando-lhe background e mais humanidade, mas vira algo bem diferente a partir do momento em que Kelly é infectada pelo vírus. Em sua nova existência como vampira, ela não vai descansar enquanto não infectar também o garoto para poder tê-lo novamente junto dela, de modo que a disputa que antes acontecia nos tribunais irá continuar, só que de uma maneira bem mais selvagem e assustadora.

Puxa, comentar livros muito ricos é difícil! Conforme vou escrevendo, vão surgindo mais e mais pontos interessantes que não parece certo deixar de mencionar. Um deles acaba de me ocorrer por causa dessa comparação entre os vampiros de que estamos falando aqui e os vampiros clássicos. Mas, afinal, que raios é um "vampiro clássico"? Suponho que podemos defini-los como sendo os vampiros criados por autores vitorianos como Bram Stoker, John William Polidori, Joseph Sheridan Le Fanu, esse pessoal, e os que vieram depois, diretamente influenciados por eles, tanto na literatura quanto no cinema. Porém, o vampiro em si é mais antigo que isso, e, em sua origem, muito menos glamouroso. Para falar a verdade, nas lendas da Europa oriental, que datam, no mínimo, do fim da Idade Média (e muito provavelmente de bem antes), os vampiros são descritos como seres repelentes, tão dignos de pena quanto de temor, com uma aparência hedionda – às vezes cadavérica, outras com traços animais –, que andavam nus ou cobertos de trapos imundos, escondiam-se em túmulos enlameados e tinham pouca ou nenhuma inteligência. Que diferença entre isso e as representações de vampiros na cultura popular do século XXI, não?… O que a Trilogia da Escuridão faz, de certa forma, é apontar para as origens, ao mostrar a face mais bestial e menos sedutora do vampirismo. Ao mesmo tempo, a existência de exemplares "superiores", como os escolhidos do Mestre, pode ser vista como a possível origem das noções a respeito de vampiros mais inteligentes e sofisticados, como os Lordes Ruthven, as Carmillas e os Dráculas dos vitorianos.


Os fãs do cineasta mexicano Guillermo del Toro ficaram surpresos com a notícia de sua estreia como escritor, e, quando se soube que seria em parceria com o veterano Chuck Hogan, foi inevitável a dúvida: será que esse não vai ser mais um daqueles casos em que um dos autores faz o trabalho, enquanto o outro entra com o nome famoso? Porém, quem leu convenceu-se do contrário: Hogan provavelmente foi o responsável por dar forma ao texto, mas o estilo de Del Toro está por toda parte; a própria ideia geral deve ter sido dele. E, se a estreia do cara na literatura surpreendeu, o fato de a obra resultante ser adaptada para a tela já era de se esperar – só que a tela em questão acabou sendo a da TV em vez da do cinema, seu campo costumeiro de atuação. O que nos leva ao próximo tópico…

Na TV

The Strain (algo como "linhagem, descendência") era o título original da Trilogia da Escuridão, e foi mantido na série de TV baseada nela. A produção é do canal FX, e a primeira temporada, exibida nos Estados Unidos em 2014, já está disponível entre nós em DVD. A segunda está indo ao ar este ano em terras gringas, e a terceira está confirmada para 2016; uma temporada para cada volume da trilogia. Quando a série chegou ao Brasil, foi exibida e lançada em DVD com o título em inglês mesmo, que provavelmente foi considerado mais chamativo – algo bem típico do nosso país, embora eu não possa dizer que aprovo.

Quem lê um livro e gosta muito costuma ficar contrariado quando assiste à versão audiovisual e constata que muita coisa foi alterada – mas será que faz sentido ter essa reação quando o próprio autor esteve envolvido na produção? Quando as mudanças feitas foram decididas ou, pelo menos, aprovadas por ele? É o que se verifica aqui: Del Toro e Hogan criaram a série, baseada, naturalmente, em seus próprios livros, e assinam a produção executiva; além disso, Del Toro dirigiu o episódio-piloto, verdadeiro longa-metragem com mais de 70 minutos de duração, muito mais que os outros episódios, que têm em torno de 40 minutos cada. Num dos extras encontrados nos DVDs da primeira temporada, ele diz que uma das coisas legais nas alterações feitas é que, dessa forma, a série reserva surpresas até mesmo para quem leu os livros. Eu acrescentaria que, para os autores, essa produção deve ter representado uma oportunidade rara: a de "passar a limpo" uma obra depois de já publicada! Quem escreve fatalmente conhece a experiência e a sensação: você está trabalhando num texto (seja um post para um blog ou uma trilogia de romances, tanto faz) e, depois de muito quebrar a cabeça, por fim consegue lhe dar uma forma final que o deixa satisfeito – naquele momento. Porém, é inevitável que, ao reler o resultado mais tarde, você ache que poderia ter ficado melhor, caso tivesse feito isto ou aquilo de forma diferente. Até onde sei, a história da literatura registra raros casos de livros que tenham sido "mexidos" de forma significativa (ao menos por seus próprios autores) depois de publicados. Hoje em dia, entretanto, novas mídias abrem possibilidades novas, e, graças a isso, Del Toro e Hogan puderam reinventar o que consideraram "reinventável" em sua saga, sem atormentar seus leitores com diferentes versões dos livros.

Nos papéis principais da série estão David Bradley (que interpreta Abraham Setrakian na atualidade, sendo substituído por Jim Watson nas cenas da juventude do personagem), Corey Stoll (Eph Goodweather), Mia Maestro (Nora Martinez), Kevin Durand (Vasiliy Fet), Jonathan Hyde (Eldritch Palmer) e Robin Atkin Downes (o Mestre). E, a meu ver, duas das mais importantes mudanças ocorridas na transição das páginas para a tela são representadas por dois personagens que não fazem parte dessa lista de "principais". Um deles já existia nos livros, embora só aparecesse no segundo volume e tivesse relativamente pouca importância: é Thomas Eichhorst, que comandava o campo de Treblinka quando Setrakian era prisioneiro lá. Convertido em vampiro, Eichhorst continua vivo (se é que ser vampiro é estar vivo) e em plena atividade no século XXI. Na série, o personagem aumentou muito em importância, aparecendo, e bastante, desde o início da primeira temporada. No presente, serve ao Mestre, sendo o contato entre ele e Palmer; no passado, é uma figura-chave durante os flashbacks ambientados nos dias da Segunda Guerra, que, por sinal, foram muito ampliados em relação ao que havia nos livros. Para completar, Eichhorst é magnificamente interpretado por Richard Sammel, que, além de atuar bem, tem até a aparência perfeita para "ser" um oficial nazista.


A outra personagem a que me referi é a hacker Dutch Velders; essa foi criada para a série. Ela começa do lado errado: Palmer a contrata para derrubar os principais servidores de internet da América do Norte, a fim de dificultar as comunicações e reduzir as chances de que se forme alguma resistência organizada contra a propagação da praga vampírica. Dutch, que nada sabe sobre o vírus e seus efeitos, executa a sabotagem acreditando estar "apenas" servindo a alguma trapaça corporativa; quando conhece o grupo de heróis e compreende o que ajudou a fazer, ela muda de lado e torna-se uma aliada valiosa para Setrakian e companhia – além de atrair o interesse de Vasiliy, um sujeito, até então, bem pouco romântico. Dutch é interpretada por Ruta Gedmintas, que, por causa desse nome incomum e de sua beleza exótica, cheguei a pensar que viesse de algum país improvável, mas não: a gata é inglesa (sua personagem também é, apesar do apelido de Dutch, 'Holandesa'), nascida na histórica Canterbury, e já participou de outras produções de destaque, como The Tudors, que, infelizmente, ainda não conheço. A inclusão de Dutch na trama parece atender às rápidas mudanças no mundo da mídia e das comunicações: o primeiro volume da Trilogia foi publicado em 2009, mas começou a ser bolado alguns anos antes, por volta de 2005. Nessa época, a internet já era parte integrante da vida de pessoas e nações, mas as comunicações ainda não eram totalmente dependentes dela, como hoje, de modo que Hogan e Del Toro provavelmente não pensaram que Palmer e o Mestre teriam que fazer algo com a rede para que seu plano funcionasse. Já em 2014, esse seria necessariamente um ponto essencial da coisa toda, e é aí que entra Dutch. São os autores reinventando sua criação, como escrevi acima.

Acho curioso, ainda, assinalar um detalhe sobre Nora. Nos livros, nada é dito sobre sua nacionalidade, mas, como seu nome e biotipo indicam origem hispânica, o leitor é levado a deduzir que ela pode ser mexicana, ou hispano-americana mesmo. Na série, é revelado que ela nasceu na Argentina e lá viveu sua infância, presumivelmente durante os anos 70 e início dos 80, ainda sofrendo os efeitos de uma das mais cruéis ditaduras que a América Latina, infelizmente tão experiente com esse tipo de coisa, já conheceu. Em um ou dois diálogos com Eph, Nora traça breves comparações entre tirania e vampirismo, baseadas no que viu e sentiu em seu país de origem quando era criança. Aí tem o dedo de Del Toro, que, sendo mexicano e admirado mundo afora, está em boa posição para lembrar ao público dos Estados Unidos que o resto do mundo existe e tem seus próprios problemas ― algo que os ianques têm extrema facilidade em esquecer. Além disso, o cara parece considerar questão de honra mostrar a dura realidade da vida de pessoas comuns sob regimes ditatoriais, como deve ter notado quem viu O Labirinto do Fauno.

A Trilogia da Escuridão e The Strain, a série de TV, são algo um pouco diferente das coisas que os fãs de Guillermo del Toro estão acostumados a receber dele, mas não menos fascinante ou empolgante. Ambas as obras misturam com eficiência drama, suspense, terror e ficção científica, e acorrentam o leitor/espectador de forma implacável, levando-o a querer mais e mais, até chegar ao desfecho da coisa toda. Prevejo que quem assistir à primeira temporada da série vai querer ler os livros, nem que seja só por não aguentar esperar mais dois anos pelo final da história. E essa é uma leitura que recomendo com entusiasmo!