sábado, fevereiro 28, 2015

O Monstro de Florença

Este livro-reportagem muito bem escrito trata de um dos maiores, se não o maior mistério da crônica policial italiana em todos os tempos: o serial killer que ganhou da imprensa (na verdade, de Mario Spezi, coautor do livro) o apelido de "o Monstro de Florença". Embora, na capa, o nome de Spezi apareça junto ao de Douglas Preston, escritor norte-americano relativamente famoso no campo do romance policial, o texto parece ter sido integralmente escrito por Preston. A coautoria atribuída a Spezi fica por conta do fato de ele, no exercício de suas funções de jornalista, ter acompanhado a história do Monstro desde 1981 – muito antes de conhecer Preston – e formado, ao longo dos anos, um vasto arquivo de documentos referentes ao caso. Sua obsessão pelo assunto, e o conhecimento que acumulou sobre ele, levaram seus colegas da imprensa a apelidá-lo de "monstrólogo". Foi Spezi quem, apoiado em todo esse conhecimento, colocou Preston a par de tudo quando este último chegou a Florença, no ano 2000.

Foi em junho de 1981, a propósito, que a polícia e a imprensa somaram dois mais dois e perceberam que havia um serial killer em ação. O assassinato do casal Carmela De Nuccio e Giovanni Foggi, quando faziam sexo dentro de um carro junto à estrada rural denominada Via dell'Arrigo, perto de Florença, tinha muitos pontos de semelhança com o de Stefania Pettini e Pasquale Gentilcore, em 1974, em Borgo San Lorenzo, também nos arredores de Florença ― e, embora isso só tenha sido "desenterrado" depois, também com o de Barbara Locci e Antonio Lo Bianco, em 1968. O exame balístico mostrou que os projéteis responsáveis pela morte das vítimas, em todos os três crimes, eram de um mesmo lote, e, mais importante, haviam saído todos da mesma arma, uma pistola Beretta calibre 22. Um novo assassinato, com características idênticas, ocorreu em outubro de 1981, e outro em 1982. Daí em diante, os crimes se sucederam, sempre um por ano e sempre no verão, até 1985, quando pararam. Oito assassinatos duplos – dezesseis pessoas mortas. O modus operandi do assassino era sempre o mesmo: espreitar um casal que estacionasse o carro num local ermo a fim de fazer sexo, e atacar quando estivessem mais entretidos. Homem e mulher eram mortos a tiros e, depois, o corpo da vítima feminina era arrastado até uma certa distância e submetido a mutilação sexual – tudo sempre tão igual e metódico que chegava a parecer um ritual, o que não é raro em se tratando de serial killers. Análises de peritos da polícia determinaram que o assassino escolhia cuidadosamente o local, matando apenas em terreno que conhecesse bem; já as vítimas eram escolhidas ao acaso, bastava que estivessem no lugar certo (ou, do ponto de vista delas, errado) e que fossem um casal (numa ocasião, o Monstro pegou dois turistas alemães gays, mas os peritos foram unânimes em considerar que foi por engano, tanto que, ao perceber que eram dois homens, ele se retirou sem completar o ato costumeiro).


Por muito tempo, os suspeitos favoritos da polícia foram dois irmãos sardos, Salvatore e Francesco Vinci. Primeiro Salvatore e depois Francesco haviam sido amantes de Barbara Locci, a vítima feminina do crime de 1968, assassinada quando estava com o amante da vez, Antonio Lo Bianco, o que poderia ter servido de motivação para o ato – ciúme ou despeito. Acontece que o marido de Barbara, um certo Stefano Mele, havia confessado o assassinato dela e de Antonio, exatamente com a mesma motivação, sendo preso em seguida – e preso continuava em 1974 e 1981, de modo que não poderia ter cometido os crimes seguintes. Apesar disso, a análise balística não deixava dúvida: todos os assassinatos tinham sido praticados com a mesma arma. Poderia ter acontecido que Stefano – um homem de cabeça meio fraca –, depois de cometer o crime, tivesse entrado em pânico e feito uma canhestra tentativa de livrar-se da pistola, que, dessa forma, teria acabado em poder de um dos irmãos, já que estes tinham ligações com ele e sua família.

O fato de serem sardos já lançava uma certa sombra sobre os Vinci. Embora a Sardenha, politicamente falando, seja uma região autônoma da Itália, os sardos, em muitos sentidos, são um povo à parte, e gostam de continuar assim; para eles, os italianos do continente são "estrangeiros". Sardos têm há muito tempo a fama de violentos e vingativos, e também de se regerem por leis próprias, não escritas, e, por isso, não darem muita importância às leis instituídas. Acontece que nem Salvatore nem Francesco pareciam encaixar-se no perfil do assassino – um perfil feito pelo FBI americano, a pedido da polícia italiana. O Monstro (segundo o tal perfil) parecia sofrer de uma grave inadequação sexual, sendo provavelmente impotente e não se sentindo capaz de interagir com pessoas vivas, de modo que procurava "possuir" as mulheres da única maneira que conseguia: matando-as. Quanto aos homens, eram apenas um obstáculo que ele removia. Pois bem… Francesco, o mais jovem dos irmãos Vinci, era um notório mulherengo, enquanto Salvatore era ainda menos seletivo, "pegando" mulheres e homens indistintamente. Com certeza nenhum dos dois era impotente ou tinha medo de pessoas vivas. Entretanto, parece que ao menos parte do pessoal da polícia, promotores etc., tinha uma tendência a agarrar-se a uma teoria (mesmo que ilógica) e fazer o que fosse preciso para manter a investigação atrelada a ela – inclusive ignorar evidências, se estas fossem contrárias à tal teoria. Isso custou a ambos os Vinci longas temporadas na prisão.

Ainda nessa esfera, é preciso assinalar que o livro não pinta um retrato muito lisonjeiro da polícia italiana de maneira geral: dos oito duplos assassinatos investigados em conexão com o caso, apenas no último é que alguém teve a ideia de isolar a cena do crime. Nos outros sete, policiais, jornalistas e até reles curiosos puderam circular livremente pelos locais, e só Deus sabe quantas pistas que poderiam ter sido importantes foram inutilizadas. Isso sem mencionar as diversas vezes em que a investigação enveredou por becos sem saída devido a conflitos de egos, incapacidade de reconhecer erros, ou por causa da tradicional rivalidade entre a polícia e os carabinieri, que são o equivalente italiano de uma polícia militar.

Como é dito em algum lugar do livro, a investigação a respeito do Monstro de Florença transformou-se, ela própria, num monstro, e não apenas por causa das dimensões enormes que assumiu ao longo de muitos anos. Pessoas foram acusadas e presas injustamente, e mais de uma delas teve a reputação e/ou a vida arruinada. Numa reviravolta bizarra, o próprio Mario Spezi passou um tempo atrás das grades e foi levado a julgamento, acusado de obstrução da justiça, de plantar provas contra um inocente, e até mesmo de ser um dos "mandantes" dos crimes do Monstro. Quanto a Preston, escapou por pouco de passar os mesmos apertos, e parece que a única coisa que livrou sua pele foi sua cidadania americana – sendo que precisou deixar a Itália e abster-se de lá retornar durante um bom tempo, pois, caso o fizesse, poderia mesmo acabar preso. Uma vez em segurança nos Estados Unidos, entrou em contato com organizações de proteção à imprensa de diferentes países e deflagrou uma campanha internacional pela libertação do amigo. Fosse por causa dessa pressão ou porque os juízes acabaram vendo a luz, o fato é que Spezi foi absolvido e saiu de cabeça erguida, aclamado por jornalistas do mundo todo como um herói da liberdade de imprensa. Outros não tiveram a mesma sorte.

Além de tudo o que já citei, a investigação do Monstro incluiu o melhor e o pior que existe em qualquer força policial ou sistema de justiça: houve homens tenazes e corajosos, que, em seu esforço para descobrir o culpado, foram muito além daquilo que as atribuições de seus cargos exigiam, e houve oportunistas vulgares, que usaram o caso como trampolim para progredir na carreira. Pior ainda: Preston tem certeza de que a prisão e o julgamento de Spezi aconteceram por obra e graça do inspetor-chefe Michele Giuttari e do promotor Giuliano Mignini, que teriam levantado as acusações contra ele como represália pelas duras críticas que lhes fizera em artigos publicados em jornais.

O leitor atento provavelmente terá estranhado quando eu disse que Spezi foi acusado de ser mandante dos crimes do Monstro de Florença: desde quando um indivíduo perturbado que mata com motivação sexual tem "mandante"? Quem explica isso é um aristocrata florentino, amigo de Spezi e Preston, o conde Niccolò Caponi. Numa conversa com Preston, Caponi lhe apresenta o conceito de "dietrologia" (do italiano dietro, 'atrás'), a "ciência" de sempre ver coisas ocultas nos bastidores, de nunca aceitar explicações simples, dando sempre preferência à versão mais rebuscada que for oferecida a respeito de qualquer assunto ― e, se envolver figuras importantes da sociedade, melhor ainda. Em outras palavras: para a opinião pública italiana (segundo Caponi), não seria suficientemente emocionante admitir que o Monstro de Florença era algum tipo de assassino psicótico, que agia por conta própria e matava por suas próprias razões doentias; era muito mais interessante acreditar que, por trás dos crimes, havia alguma organização secreta, provavelmente uma seita satânica que enviava o assassino, ou assassinos, em busca de despojos sexuais humanos para serem usados em rituais macabros. Por mais que custe crer, essa versão digna de tabloide sensacionalista orientou durante anos uma das principais linhas de investigação no caso do Monstro (conduzida por Giuttari, o que explica o porquê dos ataques de Spezi). Eu diria que o conde Niccolò tem um olhar bastante arguto, mas engana-se quando afirma que o gosto pela "dietrologia" é uma característica tipicamente italiana: basta ver a paixão do público norte-americano (e de muita gente em todos os países do mundo) por teorias da conspiração, para constatar que esse fenômeno não tem fronteiras.

O Monstro de Florença é um livro de não-ficção que não fica a dever nada a um bom romance de suspense – e, por falar nisso, não poderia deixar de mencionar que, além de Preston, outro escritor americano interessou-se pela história do Monstro: ninguém menos que Thomas Harris, autor de O Silêncio dos Inocentes e de sua sequência, Hannibal, que mostra o psiquiatra/psicopata Dr. Hannibal Lecter vivendo em Florença e trabalhando como curador da biblioteca do Palácio Caponi (sim, o palácio da família do conde Niccolò). Harris estudou o caso do Monstro e até assistiu aos julgamentos de alguns acusados, e detalhes reais dos crimes e de sua investigação foram uma clara fonte de inspiração para seus escritos.

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