terça-feira, março 18, 2014

Assombro

Um punhado de pessoas com ambições literárias responde a um anúncio tentador colocado em vários quadros de avisos: um convite para um "retiro de escritores". A proposta é que, durante três meses, os participantes deixem para trás tudo o que os impede de criar sua obra-prima: emprego, família, casamento, distrações, vícios. Durante esses 90 dias, esses candidatos a autores de bestsellers ficarão isolados do mundo, dedicando-se exclusivamente a seu trabalho criativo.

Parece muito bom, até que todos chegam ao local do retiro –um velho teatro – e descobrem que estão presos lá. Seu anfitrião, o velho Sr. Whittier, alega que tudo o que pede deles é que façam o que vieram fazer, aquilo que, enquanto estavam no mundo exterior, tudo servia de desculpa para não fazerem: dedicar-se a escrever algo realmente bom, ou, pelo menos, vendável. Mas ninguém parece escrever coisa alguma. A narrativa alterna entre o que acontece no teatro e histórias que os "confinados" contam uns aos outros, e que aparecem no livro sob a forma de contos. O mais curioso é que as histórias não parecem ser ficção, e sim coisas que aconteceram na vida real de cada um dos presentes – por mais que os fatos narrados, de tão bizarros, pareçam inventados. E, para não destoar da bizarrice, os eventos no teatro também são absolutamente esdrúxulos, embora sigam uma lógica (tortuosa) e uma motivação (mesquinha). O que há é que as pessoas trancadas no antigo teatro constituem a coleção mais variada possível, mas todos têm algo em comum: ninguém ali quer virar escritor por amor à arte – o que todos querem é ficar ricos e famosos. E a melhor oportunidade para isso, pensam eles, é escrevendo a história de seu "cruel encarceramento" pelo "maníaco" Sr. Whittier e sua cúmplice, a Sra. Clark. Pois, como está escrito em alguma página de Assombro, "esse é o sonho americano: transformar sua vida em algo que você possa vender".

Na verdade, a vida ali não é particularmente ruim: há comida à vontade e ninguém é submetido a maus-tratos. A única coisa é que não podem sair antes do prazo fixado de 90 dias, tempo durante o qual espera-se que produzam qualquer coisa de notável. É claro que essa situação não renderia um romance capaz de liderar as listas de bestsellers e de ser transformado em roteiro para um blockbuster de cinema – mas com alguns retoques, quem sabe? Então, as próprias "vítimas" encarregam-se de piorar as coisas, adotando providências que vão desde violar embalagens de alimentos para que estraguem mais depressa, até automutilações (!). O raciocínio é simples: quando o cativeiro for descoberto e a polícia invadir o local para "salvá-los", as câmeras de TV certamente estarão gravando tudo, e o que haveria de chocante ou de sensacional em um grupo de pessoas sendo resgatadas ilesas e bem-alimentadas? De jeito nenhum! É preciso que todos estejam satisfatoriamente magros e abatidos, e que tenham ferimentos para exibir, a fim de "provar" os horrores inimagináveis pelos quais dirão ter passado: isso tudo é indispensável para obterem a simpatia do público, convites para participar de programas entrevistas na TV e, mais tarde, uma adequada atenção da mídia para seu livro/filme. A propósito, ninguém parece ter dúvida de que o resgate vai chegar uma hora ou outra, e tudo o que acontece no interior do teatro vai sendo anotado, gravado em áudio ou vídeo, e, principalmente, reelaborado e discutido: será que isso vai ficar bacana na tela? Deveríamos exagerar um pouco esta parte? Como o público vai reagir a isso? Enfim, a mídia é o parâmetro para tudo, principalmente para a vida real, sem excluir seus momentos mais bizarros e desesperados.

Na história principal – a dos aspirantes a escritores trancados no teatro –, nunca fica claro quem é que está narrando. Durante a maior parte do tempo, a pessoa verbal é a primeira do plural ("nós"), como se a voz pertencesse a um dos confinados, sem que saibamos qual deles. Já nos contos, fica variando, de forma aparentemente aleatória, do "você", como se o narrador estivesse dizendo ao personagem o que acontece com ele (ou, mais propriamente, levando o leitor a pôr-se na pele do personagem), para "eu" ou "nós", inclusive dentro do mesmo conto. Essa oscilação de pessoa verbal é uma inconsistência comum em textos produzidos por gente pouco acostumada a escrever; como não li nenhum outro livro de Palahniuk antes, não sei dizer se ele é daqueles autores que cultivam um estilo tosco deliberadamente, se é dos que não gostam de "perder tempo" com "bobagens" como coesão e coerência, ou se está apenas procurando dar cores mais vivas ao enredo, tentando escrever como escreveriam as pessoas envolvidas, nenhuma das quais parece ter maior intimidade com literatura, apesar do sonho de serem escritores, ou, melhor dizendo, de terem a boa vida que acreditam que um escritor de sucesso tenha. De qualquer forma, embora a narrativa principal tenha os seus achados, a atração do livro são mesmo os contos.

Não é possível adiantar muita coisa sobre essas "histórias dentro da história" sem entregar detalhes-chave que estragariam o prazer do leitor – se bem que "prazer", aqui, é uma palavra que deve ser usada com reservas. Ao escrever quase todos esses contos, Palahniuk tinha a clara intenção de dar um tapa na cara de seus compatriotas norte-americanos, e precisamos admitir que, em maior ou menor grau, esse "tapa" serve também para os leitores de qualquer outro país, e pode ser igualmente útil para "acordá-los" um pouco. Vamos concordar que, quando uma sociedade valoriza as aparências acima de tudo, faz cobranças absurdas e rotula de fracassado quem não consegue satisfazê-las, recompensa o mau-caratismo, transforma a mediocridade e a pobreza de espírito num padrão, acoberta formas camufladas de violência em nome de dogmas "politicamente corretos", e estimula as pessoas a fazerem de suas vidas um reality show, é porque alguma coisa está muito errada. E, para nos jogar esse fato na cara de um modo que seja impossível ignorar, o meio que o autor escolheu foi narrar situações que causam desconforto, mal-estar e aflição.

De qualquer forma, pode-se dar algumas dicas… Se vocês (como eu) são daqueles que gostam de perambular por sites como o Medo B ou o Quero Medo, que, além de terror propriamente dito, também publicam curiosidades e bizarrices em geral, é bem possível que já tenham lido o conto Tripas – o primeiro e um dos mais aflitivos do livro, embora outros sejam, cada um a seu modo, tão terríveis quanto. Pós-produção é sobre exibicionismo e voyeurismo, e, principalmente, sobre como a diferença entre o que as telas mostram e a realidade pode ser grande e brutal ao ponto de destruir uma pessoa, ou, no caso, um casal. Canto do Cisne aborda a curiosidade das massas por notícias escabrosas e desastrosas, o que pode levar certos representantes da mídia a chegar a atos inimagináveis para saciar esse apetite doentio, porque "é preciso dar ao público o que ele quer". Falas Amargas aposta no humor negro (e bota negro nisso…) para criticar certo tipo de "feminismo". Fiquei surpreso ao constatar que pelo menos dois contos em Assombro – A Caixa de Pesadelos e Crepúsculo Civil – são, em tudo e por tudo, contos de terror, e bons contos de terror, que o mestre Richard Matheson possivelmente gostaria de ter escrito, e é interessante notar que, embora o elemento gore apareça bastante ao longo do livro, ele brilha pela ausência nessas duas histórias: nelas não há tortura, mutilação ou qualquer outra "amenidade" desse tipo, e a morte, quando aparece, tem uma função no enredo, em vez de ser a atração principal. O que o autor busca (e consegue) é aquela sensação perturbadora do desconhecido, do misterioso e do sinistro, de modo que não parece absurdo admitir que, nesses contos em particular, Pahlaniuk chega muito perto do que H. P. Lovecraft chamava de "horror cósmico", ainda que esse esteja longe de ser seu gênero por excelência. Estava na ponta dos meus dedos incluir aí mais um conto, Espíritos Malignos, mas acabei concluindo que esse trata-se de outro tipo de coisa, pois além de (apesar do título) não trazer sugestões sobrenaturais, suas características oscilam entre o "terror científico" e o drama.

Palahniuk fez o que os falantes de inglês chamam de save the best for last – guardar o melhor para o fim. O último conto é Obsoletos, uma coisa bastante diferente dos demais, e de várias maneiras. Para começar, é o único que não parece uma passagem autobiográfica contada por um dos personagens, e sim uma criação ficcional atribuída a um deles. Em segundo lugar, é um dos poucos que não estão limitados pela preocupação do verossímil: a maioria dos contos presentes no livro trata de coisas que poderiam acontecer, que provavelmente já aconteceram, ou que podem estar acontecendo em algum lugar; Obsoletos e dois ou três outros lançam mão dos recursos da pura imaginação – terror, fantasia e, aqui especificamente, uma mistura alucinante de misticismo com uma pitada de ficção científica – para provocar reflexão sobre certos temas muito reais e cotidianos. Com uma observação: o misticismo aí mencionado não envolve coisas difíceis como fé, autoconhecimento ou desejo de melhorar; é o misticismo fast food, rápido, prático, consumível, enfim, o tipo de misticismo que tem procura no mercado. Quando terminei Obsoletos, desejei que Assombro não fosse o primeiro livro do autor que eu estivesse lendo: se eu o conhecesse melhor, estaria devidamente embasado para emitir a opinião de que "mais Palahniuk, impossível". Grande conto.

Dizer que um determinado autor, ou você ama, ou odeia, é um dos mais manjados lugares-comuns da crítica literária, e, como seria de se esperar, já li isso também sobre Chuck Palahniuk. Se for verdade, eu ainda não consegui decidir de que lado fico… Não dá para negar que vários dos contos que fazem parte de Assombro são trabalhos de alto nível: escritos de forma vigorosa, prendem a atenção, provocam, perturbam, deixam o leitor refletindo depois, e qualquer pessoa que já tenha lido bastante na vida sabe que um escritor que consegue fazer com que seus textos tenham todas essas características merece, no mínimo, respeito. Por outro lado, nota-se em Palahniuk um gosto por chocar e escandalizar, e eu não sei até que ponto acho isso uma coisa que se deva admirar. É possível que eu conclua que essa tendência se justifica quando não é gratuita: não simplesmente chocar por chocar, mas, por exemplo, para chamar atenção para um fato absurdo que achamos normal porque estamos habituados a ele, usando a lente do grotesco para nos mostrar esse mesmo fato sob uma ótica diferente e, assim, forçar-nos a encarar a dúvida, a pensar sobre o assunto, o que, de outra forma, talvez não viéssemos a fazer. Pode ser. Por ora, tudo o que posso adiantar é que pretendo ler outras coisas do autor antes de fazer um julgamento. E que Assombro pode ser recomendado para aqueles leitores que não se sentem ameaçados quando alguém os desafia a questionar algumas coisas "normais" e cotidianas. Ah: um estômago forte também ajuda.