sexta-feira, dezembro 12, 2014

Ao Cair da Noite

Gosto de comparar a atividade de escrever com uma corrida: um romance está para um conto assim como uma maratona está para os cem metros rasos. O romancista, tal como o maratonista, precisa saber administrar seus recursos ao longo da "prova", saber o momento de acelerar e o de desacelerar, e pode até mesmo, com técnica e paciência, recuperar-se de uma largada ruim e vencer. Já o contista vive situação semelhante à de um corredor velocista: a vitória e a derrota são decididas em questão de instantes. Numa corrida de cem metros rasos, a única maneira de vencer é garantindo a dianteira logo nos primeiros segundos; não haverá tempo para tentar de novo. O mesmo se aplica ao conto: o autor só dispõe do espaço de poucas páginas para fazer com que sua história funcione – ou não. No mundo do atletismo, é preciso escolher: não dá para ser velocista e maratonista, já que cada modalidade requer preparação física e treinamento específicos. Na literatura, em princípio, nada impede que um mesmo autor se dedique ao romance e ao conto, mas apenas os muito bons em seu ofício conseguem se sair igualmente bem nos dois gêneros.

Nenhum crítico do mainstream jamais vai admitir que Stephen King seja um bom escritor. A maioria deles provavelmente nunca o leu, nem pretende; parece que meter o malho no cara é meio que um requisito para ser bem visto em certos círculos, quiçá para ser convidado a certas festas. Não é considerado cool gostar de Stephen King, talvez porque ele tenha muitos fãs e seus livros vendam muito. Afinal, admitir que algo de que o "grande público" gosta possa ser bom significa admitir também que muito mais gente além dos críticos pode ter cérebro, e isso seria blasfemo, não seria?

A essa espécie de "crítico", deixo o meu mais cordial fuck you, junto com minhas desculpas a algum que eventualmente não se enquadre no estereótipo. O que acontece é que King geralmente satisfaz com brilhantismo a todas as exigências que um leitor razoável poderia fazer a um escritor: sua prosa é fluente, agradável de acompanhar, seus personagens têm vida, sua narração prende, seus mistérios convencem, seus horrores funcionam. Se tudo isso não bastar para fazer de alguém um bom escritor, bem, então receio que coisa alguma possa fazer essa "mágica".

Portanto, e pouco importa o que digam certos frustrados invejosos, sim, Stephen King é um dos que dominam, e muito bem, a arte da escrita. Quem já leu várias de suas obras tem a impressão de que ele fica à vontade tanto em narrativas curtas quanto nas longas, e isso torna duplamente curiosa a confidência que ele nos faz na introdução de Ao Cair da Noite: sua própria experiência, como escritor, a respeito da questão conto/romance. Segundo King, "muitas coisas na vida são como andar de bicicleta, mas escrever contos não é uma delas. pra esquecer como se faz". Ele começa relembrando (com uma certa nostalgia, ao que parece) os tempos em que era um jovem professor do ensino médio, escrevia contos nas horas vagas e tentava vendê-los para publicação em revistas. Nessa época, pelo que nos conta, ele não se lançava em reflexões teóricas sobre o ato de escrever: simplesmente escrevia, de forma mais ou menos instintiva, conforme as ideias iam aparecendo, e a "opção" pelo conto não era opção nenhuma, mas uma necessidade, já que histórias curtas são mais rápidas de escrever e mais fáceis de vender, o que era um fator a considerar para um jovem aspirante a escritor, e já com esposa e filhos em quem pensar. Mais tarde, com a carreira já consolidada e podendo escrever em tempo integral, King passou a se dedicar ao romance, e, segundo ele mesmo, parece ter perdido a "manha" de como escrever contos; ele chega a contar, no que parece até uma confissão, que algumas boas ideias morreram porque ele não sabia mais como pô-las por escrito.

A salvação (sempre segundo King) veio de forma inesperada, com um convite para editar o volume de 2006 de uma antologia anual que reúne sempre 20 dos melhores contos publicados nos EUA ao longo do ano anterior. Para selecionar os 20 que fariam parte do livro, King leu centenas de contos, a maioria de autores novos, o que, para ele, valeu por um curso intensivo de recapitulação sobre a arte da ficção curta. É a essa experiência que o escritor atribui o revigoramento de suas capacidades como contista, e, por conseguinte, a própria existência da maior parte das histórias que encontramos neste Ao Cair da Noite. Que, vamos admitir desde já, estão longe de ter a mesma força que aquelas do extraordinário Sombras da Noite: seja devido à idade ou por algum outro motivo, Stephen King parece cada vez mais relutante em recorrer a elementos sobrenaturais, preferindo com frequência o thriller psicológico e o suspense. Mesmo quando o sobrenatural aparece, geralmente é de forma bem mais soft que aquilo que nós, leitores de longa data, estávamos acostumados a esperar de King. Há apenas uma ou outra exceção – mas nem mesmo tudo isso faz de Ao Cair da Noite uma leitura ruim.

Uma observação que talvez seja pertinente: revendo o sumário do livro, verifiquei que Ao Cair da Noite inclui ao todo 13 histórias; destas, cinco não mostram qualquer sinal de elementos sobrenaturais. Em quatro outras, o sobrenatural até aparece, mas de forma incidental, quer dizer, ele faz parte da narrativa, mas sem desempenhar papel central, ou até mesmo é apresentado com incerteza – sabem aquele tipo de situação em que o personagem e/ou o leitor ficam em dúvida sobre se estão diante de um mistério ou se a coisa pode ter explicação natural? Sobram quatro contos nos quais a presença do sobrenatural é indiscutível e essencial, e foi uma sacada inteligente começar o livro justamente com um desses: Willa, um dos "contos novos". Trata-se da história de um grupo de passageiros cujo trem sofreu uma pane, e que agora estão encalhados num fim-de-mundo semiesquecido no interior do Wyoming, à espera de que sejam tomadas providências para permitir que continuem sua viagem. O protagonista, David, tem a sensação de que há alguma coisa importante que ele e seus companheiros estão deixando de perceber, mas não consegue distinguir o que pode ser. Quando nota que sua noiva, Willa, que viajava com ele, não está na estação, David deduz que ela deve ter ido (sem avisá-lo) matar o tempo num bar de beira de estrada a alguma distância dali, e decide ir atrás dela, sem imaginar o que irá descobrir.

O segundo conto, A Corredora, em compensação, é um típico "Stephen King 2.0". Uma mulher chamada Emily perdeu seu bebê de poucos meses; nessa situação, em que muitas pessoas buscariam alívio no álcool, ela, quem diria, encontra refúgio na corrida. Começa a praticá-la todos os dias, de forma cada vez mais obsessiva, até estar com um preparo físico digno de uma atleta olímpica – e um casamento a ponto de implodir. Ao ter um atrito sério com o marido por conta dessa obsessão, Emily decide sair de casa, ao menos por uns tempos, toma emprestada a casa de praia de seu pai, e lá fica durante as semanas seguintes, preenchendo o tempo com leitura e, é claro, principalmente com corridas. O que ela não esperava era que um de seus vizinhos naquela praia tranquila fosse um maníaco homicida, e que correr, que era sua terapia, pudesse, de uma hora para outra, virar um fator crucial para sua sobrevivência. Uma história sem qualquer sugestão de presenças espectrais, mas na qual não faltam surpresas, aflição e arrepios.

Seguem-se altos e baixos, como é normal em qualquer livro de contos. Há certas histórias curtas e, a meu ver, sem maior relevância: O Sonho de Harvey, Posto de Parada, The New York Times a Preços Promocionais Imperdíveis (sim, isso é o título do conto!) e mais algumas. Mas é então que nos deparamos com algo muito mais interessante: As Coisas que Eles Deixaram Para Trás. Essa é a história de Scott Staley, um homem que um belo dia achou que andava trabalhando demais e precisava de um descanso, e então ligou para o trabalho e mentiu que estava doente. Atire a primeira pedra quem nunca fez isso pelo menos uma vez na vida! Acontece que: 01) Scott trabalhava no World Trade Center; 02) o dia em que ele decidiu dar-se folga foi precisamente terça-feira, 11 de setembro de 2001. Não é difícil imaginar o efeito de algo assim sobre a cabeça de uma pessoa. Todos os colegas de trabalho de Scott – pessoas com quem ele conviveu durante anos – morreram de uma vez só, e ele sabe que só se salvou por acaso, pelo fato fortuito de seu desejo de ficar na cama haver sobrepujado sua força de vontade exatamente naquele dia, e não em outro qualquer. Mas, terríveis como possam ser, esses eventos ainda fazem parte do universo conhecido e "palpável". Bem diferente dos fatos inexplicáveis que começam a acontecer com Scott cerca de um ano depois: objetos pessoais dos colegas mortos aparecem em seu apartamento, lugar ao qual apenas ele deveria ter acesso, sem contar que tais objetos já nem deveriam existir, pois não há como não terem sido destruídos no atentado que matou seus donos. Com o surgimento de cada objeto, Scott também passa a ter terríveis visões dos últimos e desesperados momentos da pessoa que o possuía. Mesmo quase pirando de medo (e quem o culparia por isso?), nosso herói sente, ou acredita, que tudo isso esteja acontecendo por um motivo; talvez seus colegas, onde quer que estejam, queiram que ele faça por eles algo que já não podem fazer por si mesmos.

As Coisas que Eles Deixaram Para Trás é um ótimo conto, mas não leva a coroa de melhor do livro, só por culpa de N. Acredito que essa seja a história curta de maior alcance e a mais ambiciosa a sair do computador de King em muitos anos. Certo, não é tão "curta" assim: são 57 páginas. A narrativa é apresentada como sendo um conjunto de anotações feitas por John Bonsaint, um renomado psiquiatra que se suicidou recentemente. À primeira vista, as anotações parecem banais, referindo-se a um paciente que o Dr. Bonsaint designa apenas pela inicial N. E esse "N." sofre de um caso extremo de TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo), que o faz gastar horas, todos os dias, a contar e organizar todo tipo de coisa. Pacientes desse transtorno geralmente não conseguem explicar o porquê de agirem assim; alguns relatam sentir que contar e organizar é necessário para manter o universo nos eixos – só que, no caso de N., isso não é força de expressão. Ele afirma saber exatamente onde, quando e como começou seu distúrbio: num campo na região rural de uma pequena cidade do Maine (claro que tinha que ser no Maine!), onde chegou por acaso, enquanto praticava seu hobby de fotografar paisagens. Nesse campo existe um estranho círculo de pedras, que, examinadas à luz do dia, não parecem ter nada de extraordinário… Mas, ao crepúsculo, parecem ter sido entalhadas com caras espantosas; algumas, de monstros inimagináveis; outras, humanas, mas, segundo N., ainda mais horrendas que as primeiras.


Além disso, as pedras, vistas a olho nu, são sete, mas, olhando através do visor de sua câmera, são oito. Ele está convencido de que o círculo é algum tipo de portal, ligando nosso mundo a alguma dimensão de pesadelos, e o que é pior: está convencido também de que esse portal está apenas precariamente selado, e de que o fato de tê-lo descoberto fez dele, N., o guardião involuntário da passagem. O conto perpetua uma tradição antiga na literatura fantástica, aquela clássica situação em que o desafortunado personagem se vê diante da que talvez seja a dúvida mais angustiante com que um ser humano pode se defrontar: estou mesmo lidando com algo sobrenatural, ou estou simplesmente ficando louco? A mesma indagação já deu origem a um punhado de obras-primas do gênero; para conhecer um excelente exemplo, leiam O Horla, de Guy de Maupassant – em minha opinião, um dos melhores contos de terror já escritos. Durante a leitura de N., também é impossível não pensar em H. P. Lovecraft, inclusive (mas não apenas) pela menção do nome "Cthun", que bem poderia ser apenas outra forma de "Cthulhu"!… Porém, apesar dessas insinuações de dívidas para com esses autores, King faz questão de deixar bem explícito que a influência decisiva para N. veio mesmo de O Grande Deus Pã, de Arthur Machen: a epígrafe do livro é um trecho dele; no próprio conto, o personagem N. pergunta ao Dr. Bonsaint se alguma vez o leu; e se, com tudo isso, alguma dúvida ainda restar, uma das notas ao final do volume esclarece tudo. Apesar de meu primeiro contato com a obra de Machen não ter sido tão emocionante quanto eu esperava, eu sempre soube que O Grande Deus Pã era uma história que eu teria que ler, e agora muito mais.

Para finalizar, quero registrar a curiosa presença de O Gato dos Infernos, um conto antigo (a publicação original é de 1977, e tem adaptação no filme Tales from the Darkside, ou Contos da Escuridão, de 1990), mas que, inexplicavelmente, ainda não havia aparecido em nenhuma das coletâneas anteriores. É legal ter esse vislumbre do "antigo" Stephen King, o do tempo em que ele não se preocupava tanto em soar moderno. Entretanto, eu procuro não julgá-lo: um escritor não tem que escrever pensando em agradar a seus leitores, tem que escrever para agradar a si mesmo, e, ainda que Ao Cair da Noite não tenha me mantido empolgado da primeira à última página como outros trabalhos do autor já fizeram, ele de forma alguma é um livro que eu considere dispensável. Todo fã de King tem que ler.

sexta-feira, novembro 21, 2014

Em Nome do Mal

Devo começar confessando que romance policial nunca ocupou um lugar no "top four" de meus gêneros preferidos de leitura, que, embora eu nunca tenha pensado muito a respeito, é provavelmente formado por fantasia, ficção científica, ficção histórica e horror, não necessariamente nessa ordem (eu não saberia em que ordem colocá-los, na verdade) e pelos crossovers possíveis entre esses gêneros. Quanto à ficção policial, devo ter lido no máximo dois ou três livros desse tipo na vida; não sei por que, mas o gênero nunca me empolgou de verdade. Mesmo em se tratando de um autor de que gosto, como Sir Arthur Conan Doyle, merecidamente considerado um gigante da ficção policial por ter criado Sherlock Holmes, foi a seus contos de terror que dediquei atenção de forma preferencial. Tenho duas das aventuras de Holmes na minha estante, esperando a vez – mas o fato de já estarem esperando há um bom tempo, enquanto vários outros livros foram lidos assim que chegaram, deve ter algum significado.

Sendo assim, é preciso procurar uma explicação para o fato de que Em Nome do Mal, de autoria do (para mim) desconhecido escocês James Oswald, tenha me atraído. Provavelmente foi porque a capa e o título apontavam mais para uma obra de terror do que policial, e porque, ao pegá-lo e fazer aquele reconhecimento básico que todo leitor sabe como é (contracapa, orelhas, seguidas de uma folheada aleatória e da leitura de pequenos trechos em qualquer lugar onde os olhos batam), a impressão foi a de que o que encontraria seria um crossover entre os dois gêneros, o que de fato é o caso... De certa forma. A ideia soou interessante e um tanto inusitada, pois, embora vários escritores consagrados de literatura policial também tenham se aventurado em histórias sobrenaturais (e vice-versa: não esqueçamos Edgar Allan Poe!), mesmo esses parecem considerar os dois tipos de histórias como compartimentos estanques dentro de sua obra. Talvez isso aconteça porque a ficção policial, como gira em torno de investigação, apele muito à lógica e à razão, enquanto o terror, para funcionar, depende do estímulo a algumas das emoções mais básicas do ser humano. De todo modo, desde que se saiba fazer isso bem, é uma mistura que pode perfeitamente render coisas boas.

Edimburgo, Escócia. Recém-promovido a inspetor, o policial Anthony McLean sofre a aflição de uma perda pessoal quando sua avó, que o criou desde a morte de seus pais quando ele tinha quatro anos de idade, entra em coma, com pouca chance de se recuperar. Ainda afetado por esse acontecimento, McLean se depara com uma série de assassinatos excepcionalmente cruéis, e de suicídios ocorridos em condições estranhas. Todos esses casos parecem não ter relação alguma entre si, mas, ao mesmo tempo, mostram semelhanças que o cérebro investigativo do inspetor se recusa a admitir que sejam meras coincidências. As vítimas são todas homens idosos e ricos, membros respeitados da sociedade de Edimburgo, e todos eles tiveram o tórax aberto, retalhado, sendo que cada um teve um órgão diferente cortado e colocado em sua boca (credo). O detalhe desconcertante é que, logo depois de cada assassinato, houve um suicídio, de alguém aparentemente sem nenhuma conexão com a vítima – e, apesar disso, sempre aparecem evidências inegáveis apontando que o suicida foi o assassino. Mais perturbador ainda: se cada assassino se matou logo em seguida, e a polícia não divulgou detalhes das mortes, como é possível que todos os crimes tenham sido cometidos de modo idêntico, parecendo seguir um mesmo modus operandi, como se fosse um ritual?

As estranhezas não param por aí. Uma velha mansão que pertenceu a uma rica e poderosa família no começo do século XX está sendo reformada quando a derrubada de uma parede em suas fundações revela uma câmara oculta, e, dentro dela, um espetáculo macabro: o corpo mumificado de uma jovem assassinada há cerca de 60 anos. Suas mãos e pés estão pregados ao piso de madeira, há uma espécie de círculo mágico traçado à sua volta, e vários órgãos foram retirados e conservados dentro de vidros, que, por sua vez, foram dispostos ao redor, seguindo um padrão. Isso tudo torna óbvio que ela foi morta em algum tipo de cerimônia demoníaca. Como se trata de um crime praticado há tantas décadas, de modo que os responsáveis muito provavelmente já estão mortos, McLean não pode dedicar muito tempo a tentar elucidá-lo, pois seus superiores preferem, e com razão, que ele se foque nos crimes atuais, cujo mentor ainda pode estar à solta, mesmo que os executores diretos tenham se matado. Só que tudo o que ele vai descobrindo sobre esses outros casos parece levá-lo de volta ao da garota morta, como se, de uma forma sinistra que ele ainda não consegue determinar, todas as mortes estivessem interligadas. E, embora muitos dos elementos que ele vai descobrindo sejam seus velhos conhecidos devido a seus anos de experiência como detetive de polícia, há outros que parecem não ter explicação... Pelo menos, nenhuma explicação natural. Dessa forma, uma das coisas que conferem interesse ao livro é a chance que o leitor tem de ver uma mente essencialmente analítica e racional – a mente de um detetive – tentando processar fatos que, embora reais, só parecem fazer sentido caso ele admita um fundamento sobrenatural para eles, o que, por uma questão de princípios, recusa-se a fazer... até ser obrigado pelas circunstâncias.

Quem for ler Em Nome do Mal esperando uma grande dosagem de terror sobrenatural na fórmula talvez se decepcione: embora esse elemento seja uma parte fundamental no todo da história, ele mostra muito pouco a sua cara ao longo dela. Se eu próprio, de maneira geral, não me decepcionei, foi porque descobri no livro outras boas qualidades para compensar aquilo que eu procurava e não encontrei. A principal delas é sem dúvida a narrativa envolvente, que vai conduzindo o leitor de capítulo em capítulo, e o desafio de ir juntando as peças e, quem sabe, matar as charadas antes que o detetive o faça – isso me aconteceu umas duas vezes durante a leitura, e confesso que me peguei bem satisfeito ao ver que minhas teorias se confirmavam. Suponho que esse exercício mental seja uma das coisas que fazem os verdadeiros fãs de literatura policial gostarem tanto do gênero, e bem que fiquei com vontade de praticá-lo mais. O que achei frustrante foi o final, muito repentino e "fácil", se considerarmos as expectativas que o livro leva o leitor a criar.

Em Nome do Mal é o primeiro volume de uma série, mas é também uma narrativa "fechada", com início, meio e fim, de modo que ninguém precisa ficar com receio de lê-lo e depois ter que esperar talvez anos pela continuidade de uma história que o autor deixou "pendurada" num momento-chave. McLean soluciona o seu caso, mas seu próprio passado nebuloso, sobre o qual o autor, nessa primeira aventura, dá apenas pistas, leva-nos a ter vontade de continuar a acompanhá-lo. Posso dizer que, apesar do final pouco satisfatório, o livro não faz feio aos olhos de um não-fã de ficção policial, e que, se as próximas histórias do inspetor McLean seguirem nesse passo, James Oswald pode ter ganho um leitor assíduo.

quinta-feira, outubro 16, 2014

Hércules


Ir ao cinema para ver um desses filmes baseados em mitologia que andam surgindo nos últimos anos é um grande risco para criaturas como eu, que adoram mitologia desde sempre. O espectador comum, que pouco entende do assunto e não se importa especialmente com ele, não tem o que temer… Já nós, estamos sujeitos a ter um fim de semana estragado e uma crise de nervos pela falta de uma fuça que possamos socar pelo sacrilégio. E é mesmo uma loteria: você pode ver desde coisas legais como A Odisseia (a versão com Armand Assante, de 1997) ou Fúria de Titãs (o de 1981) até horrores como Troia, Fúria de Titãs 2010 ou Imortais - para falar a verdade, esse eu nem tive coragem de ver, depois do que ouvi de alguns amigos. Felizmente, Hércules não se inclui na categoria dos desastres, aqueles a que o velho Zeus responderia com certeiros raios na cabeça do diretor e do roteirista. Não é um grande filme, mas também não é revoltante. E me fez achar que essa poderia ser uma ótima deixa para outro texto nos moldes do que escrevi sobre Perseu: um olhar geral à lenda e, dentro disso, comentários sobre o filme. Talvez algum de meus leitores ache interessante - e, independente disso, sem a menor dúvida, eu me divertirei muito escrevendo-o!

Eu naturalmente já tinha lido alguma coisa sobre Hércules antes, provavelmente algum resumo bem sucinto de sua vida e principais façanhas, em algum livro sobre mitologia, mas meu primeiro contato mais minucioso com o herói foi por meio do livro Os Doze Trabalhos de Hércules, de Monteiro Lobato, que li quando tinha uns dez ou onze anos de idade. Em várias de suas obras além dessa, é fácil perceber que Lobato era um admirador apaixonado da cultura helênica - sua história, mitologia, instituições e legados. Hoje, me parece que ele tinha uma visão um tanto idealizada demais: parecia crer que os gregos foram a única civilização que "acertou", que nada antes deles se comparava e que tudo o que veio depois foi retrocesso. O autor apresentava como fato indiscutível que tudo da Grécia era superior, desde o sistema de governo até o vestuário, e, como escrevia em plenos tempos da Segunda Guerra Mundial, também dava vazão a sua indignação ante as notícias que chegavam da Europa dando conta de milhares de mortes sem sentido - e fazia isso pintando a Grécia antiga como um lugar onde a verdadeira sabedoria havia criado a paz perfeita. À luz do que sei agora, acho muito estranho que alguém que estudou tanto o mundo antigo quanto Lobato obviamente o fez, aparentemente não conhecesse o outro lado da moeda. Enxergar a Grécia apenas pelo que tinha de belo e grandioso é tão ingênuo quanto a ideia que muita gente tem de um "paraíso terrestre" no Brasil, ou nas Américas em geral, antes da chegada dos europeus. Os índios não eram perfeitos e os gregos também não: tanto os primeiros quanto os últimos eram simplesmente humanos, que lutaram guerras terríveis uns contra os outros e tinham costumes que nos deixariam horrorizados. Mas isso não é o mais importante aqui.

Os Doze Trabalhos de Hércules parece ter nascido de um "gancho" que Monteiro Lobato forneceu a si mesmo em O Minotauro, um livro mais curto e que também colocava os personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo na Grécia antiga. Por essa ocasião, Pedrinho, Emília e o Visconde de Sabugosa teriam assistido a um dos Doze Trabalhos do herói, a destruição da hidra de Lerna, e daí em diante, naturalmente, não sossegariam enquanto não assistissem aos outros onze. E assim foi que o trio voltou aos tempos heroicos da Grécia por meio do "pó de pirlimpimpim" - por falar nisso, um dos maiores problemas que os editores de hoje encontram na hora de apresentar a obra de Monteiro Lobato a novas gerações de crianças. O tal pó tinha que ser aspirado pelo nariz, causava inconsciência, e, quando a pessoa acordava, estava em outro lugar e/ou outra época - tudo lembrando perigosamente outro pó e outras "viagens". Mas, dizia eu, Pedrinho, Emília e o Visconde vão novamente à Grécia antiga, desta vez com o objetivo expresso de acompanhar Hércules em seus famosos trabalhos. Rapidamente fazem amizade com o herói e passam a ser seus companheiros indispensáveis, eles os três e mais um jovem centauro a quem Emília põe o nome tipicamente "emiliano" de Meioameio. De modo que não é um Hércules solitário, e sim esse curiosíssimo quinteto que atravessa diversas vezes a Grécia e terras vizinhas para cumprir os trabalhos determinados pelo rei Euristeu, que detesta o herói e fica decepcionado cada vez que o vê voltar com vida. Lobato apresenta um Hércules que facilmente cativa o jovem leitor: além de sua coragem e da força proverbial, ele tem um coração de ouro, mas não um cérebro no mesmo nível - o autor declara-o "burrão de nascença como todos os grandes atletas" (hoje isso seria considerado preconceituoso!). Se formos analisar a lenda em uma de suas versões clássicas, a questão da inteligência, ou falta dela, de Hércules, é controvertida - afinal, nem todos os Doze Trabalhos poderiam ter sido levados a bom termo só na base da força bruta: alguns deles foram completados graças a boas ideias. Na versão de Lobato, essas ideias vêm de Emília e às vezes de Pedrinho, com a contribuição científica do Visconde; sem a presença deles, só se pode imaginar que, ou Hércules, afinal, tinha alguns neurônios, ou então que devia contar com a ajuda constante de sua meia-irmã, a deusa Atena, de quem era protegido. Talvez as duas coisas.

O Maior dos Heróis…

Hércules nasceu em Micenas (e não em Atenas, como dito no filme recente), no palácio onde reinava a mesma dinastia outrora fundada por Perseu. O rei Anfitrião tinha duas esposas, que, casualmente, estavam grávidas ao mesmo tempo - uma, dele mesmo, enquanto a outra, a bela Alcmena, esperava um filho de (adivinhem…) Zeus. A gravidez de Alcmena estava um pouco mais adiantada, de modo que tudo indicava que o filho de Zeus nasceria primeiro e seria o herdeiro do trono, mas a deusa Hera, esposa de Zeus, que sempre fazia o que podia para infernizar a vida dos inúmeros filhos que seu marido tinha com suas também inúmeras amantes, enviou uma serpente que pregou um tremendo susto na outra esposa do rei, causando o nascimento prematuro de seu filho - Euristeu. Com isso, o filho de Alcmena ficou relegado à posição de um príncipe inferior. Quando ele nasceu, a mãe, sabendo que o menino estaria na mira de Hera, tentou apaziguar a deusa dando a ele o nome de Héracles ('glória de Hera' - Hércules é a forma latinizada). Não adiantou: o primeiro ataque de Hera contra o pequeno Hércules aconteceu quando ele ainda estava no berço, e também envolveu serpentes. Duas delas, robustas e venenosas, apareceram nos aposentos de Alcmena quando ela estava ausente e atacaram o menino; quando a mãe retornou, encontrou o bebê brincando com as cobras mortas: tinha-as estrangulado, cada uma com uma mão.

À medida em que Hércules crescia, ficou logo evidente que o elemento sobre-humano estava presente nele em maior grau que nos outros semideuses: sua força era prodigiosa, sua coragem, extraordinária, e seu apetite, insaciável. Como muitos outros heróis gregos, antes e depois dele, teve como mestre o sábio centauro Quíron (sim, Quíron acumulou um currículo extenso antes de ir para o Acampamento Meio-Sangue), que fez dele um exímio arqueiro. Já para o combate corpo a corpo, Hércules elegeu a clava como arma favorita; ao contrário da maioria dos outros heróis, nunca teve grande afinidade com espadas. Praticou muitas façanhas formidáveis, algumas delas responsáveis (conforme a antiga crença popular) até mesmo por alterar a geografia: acreditava-se que o mar Mediterrâneo tivesse sido originalmente um lago, com a Europa e a África se tocando, até que o herói, com um pontapé (!), abriu o estreito de Gibraltar, que, não por acaso, os gregos, e, depois deles, os romanos, chamavam de "Colunas de Hércules". Conta-se também que, na disputa pela mão de Dejanira, sua segunda esposa, Hércules derrotou o rio-deus Aquelau, que tinha o poder de transformar-se num touro, e, durante a luta, quebrou-lhe um dos chifres: isso provavelmente é uma alegoria mitológica. Deve significar que o rio Aquelau, a certa altura de seu curso, dividia-se em dois; Hércules, ou quem quer que esteja na origem de sua lenda, pode ter construído uma barragem - obra ambiciosa para os padrões da época -, secando um dos leitos, ou seja, simbolicamente "quebrando um chifre" do deus que personificava o rio. Por fim, as terras que formavam esse leito se mostrariam muito férteis, devido ao lodo deixado pelo rio, o que daria origem à lenda da Cornucópia, o chifre miraculoso que se enchia de qualquer coisa que seu possuidor desejasse. Esses são apenas dois dentre inúmeros exemplos que a mitologia oferece, mas ilustram bem a maneira como os antigos pensavam em Hércules: um super-homem, capaz de proezas que seriam impensáveis não só para os homens comuns, mas até mesmo para a maioria dos outros heróis.

Não obstante, embora haja muitas, as aventuras mais famosas da carreira do filho de Alcmena são, sem dúvida, aquelas que ficaram conhecidas como os Doze Trabalhos de Hércules. Segundo a lenda, a deusa Hera, que parecia nunca se cansar de perseguir o enteado, certa vez lançou sobre ele uma praga de loucura, que, embora temporária, durou o suficiente para que Hércules praticasse o crime que por pouco não arruinou sua vida: descontrolado, ele assassinou a primeira esposa, Mégara, e os três (ou sete; depende da fonte) filhos do casal. Ao voltar a si e ver o que havia feito, o herói, como diríamos hoje, entrou em depressão. Recolheu-se a uma região selvagem, onde passou a viver isolado, alimentando-se do que caçava e evitando todo contato humano. Foi resgatado por seu amigo Teseu, que, depois de uma extensa busca, conseguiu localizá-lo e o convenceu a consultar o oráculo de Apolo, em Delfos, para saber qual penitência poderia livrá-lo de sua culpa. Quando ele assim fez, ouviu em resposta que devia prestar doze anos de serviços a seu irmão de criação, o rei Euristeu. É interessante registrar que, também dependendo da versão (é sempre assim em mitologia), o nome que o herói recebeu da mãe ao nascer foi Alcides, que significa apenas "descendente de Alceu", em referência a um de seus ancestrais. Segundo essa versão, o nome Héracles foi dado pela pitonisa - a sacerdotisa que servia de voz ao deus no oráculo - justamente por ocasião dessa consulta, e assim ele seria conhecido daí em diante.

Talvez Euristeu tenha recebido ajuda de Hera para selecionar as tarefas mais difíceis e perigosas que pudesse haver no mundo da época; ou isso, ou ele realmente se esmerou na escolha. A ordem de realização dos trabalhos, como não poderia deixar de ser, varia conforme a fonte, mas, de um modo geral, é como segue…

  1. Matar o leão de Nemeia. Esse temível animal, além de ser muito maior e mais feroz que os leões comuns, era, ao que se dizia, invulnerável.
  2. Matar a hidra de Lerna, uma serpente venenosa gigante com nove cabeças, sendo que, se uma fosse cortada, duas outras cresceriam no mesmo instante.
  3. Capturar, viva, a corça de Cerínia, de chifres de ouro e cascos de bronze, que corria a uma velocidade espantosa, sem jamais se cansar.
  4. Capturar o javali de Erimanto, um verdadeiro tanque de guerra vivo, que arrasava tudo em seu caminho.
  5. Limpar as cavalariças de Áugias. Esse rei possuía milhares de cavalos, e as vastas cavalariças onde os mantinha não eram limpas havia décadas.
  6. Matar ou afugentar as aves carnívoras do lago Estínfale. Essas enormes aves de rapina devoravam indistintamente homens e animais pela região ao redor do lago, e eram cobertas por penas de bronze, o que as fazia quase invulneráveis a flechas ou lanças.
  7. Capturar o grande Touro de Creta, um animal enlouquecido que já matara muitas pessoas nessa ilha.
  8. Matar os cavalos de Diomedes, rei da Trácia, que se alimentavam de carne humana.
  9. Obter o cinturão de Hipólita, a rainha das amazonas.
  10. Roubar os bois de Gerião, um gigante de três cabeças.
  11. Obter um pomo de ouro do jardim das Hespérides.
  12. Capturar Cérbero, o cão de guarda do reino de Hades, o deus do mundo dos mortos.

É de se imaginar que passar por tão tremendas experiências mudaria qualquer pessoa, mas Hércules parece não se ter deixado afetar mais que o necessário. Terminado o período de penitência, já livre da servidão a Euristeu, retomou o modo de vida que, pensando bem, era o único possível para um homem como ele: o de aventureiro, sempre em busca de oportunidades para novos feitos heroicos. Eventualmente, ganhou o direito à mão de Dejanira - depois de derrotar Aquelau e outros rivais poderosos - e em companhia dela empreendeu a viagem de retorno a Micenas. Às margens do rio Eveno, o casal encontrou Nesso, um centauro que Hércules conhecia. O que o herói não sabia, porém, era que Nesso o odiava, por ter, anos antes, matado em combate vários parentes seus. O centauro, dissimulado, o cumprimentou afavelmente e ofereceu ajuda, prontificando-se a transportar Dejanira até a margem oposta. Uma vez fora do alcance de Hércules (ou assim pensava), tentou escapar com a moça, planejando raptá-la. Hércules, é claro, agiu depressa: atirou uma flecha que acertou Nesso em cheio. Antes de morrer, o centauro ainda teve tempo de dizer a Dejanira que seu sangue tinha um poder miraculoso. Apontando para a túnica que ela usava, e que ficara respingada de sangue, ele disse que ela devia guardá-la bem: se Hércules um dia parecesse cansado dela, tudo o que precisaria fazer seria conseguir que ele a vestisse, e teria de volta o afeto do marido, mais forte que antes. Dejanira guardou a túnica, mas durante muitos anos não voltou a se lembrar dela.

Certa ocasião, durante uma de suas expedições, Hércules salvou uma princesa de nome Iole, e pensou que seria uma boa ideia casá-la com seu filho Hilo. Levando consigo a jovem, pôs-se a caminho para a corte do rei Eurites, pai dela, a fim de propor o arranjo, e, acontecendo de passar próximo de Micenas, mandou um emissário à sua casa, para dar notícias a Dejanira e buscar algumas roupas e outros itens de que precisava. Ao encontrar a esposa do herói, o tal emissário descreveu com cores tão vivas a beleza de Iole, que Dejanira ficou mordida de ciúmes, e convenceu-se de que a intenção alegada de fazer dela sua nora não passava de um pretexto, e de que Hércules estava era apaixonado pela garota. Isso lhe trouxe de volta à memória as palavras de Nesso, e, acreditando na promessa do centauro, ela incluiu a velha túnica entre as roupas que mandou para o marido (os trajes masculinos e femininos não eram tão diferentes na época).

Gostaria que vocês não esquecessem que é de mitologia grega que estamos falando, e, portanto, de um mundo onde nenhuma maravilha - e nenhum horror - é fantástica demais para existir, então não se apressem em julgar Dejanira uma tonta. Como a maioria de nós, ela tinha uma tendência a acreditar no que desejava, e, além disso, um centauro com poção do amor correndo nas veias será mais inacreditável que cavalos carnívoros ou uma serpente de nove cabeças? De qualquer forma, Nesso a enganou: a única coisa que havia de especial em seu sangue era o veneno da hidra de Lerna. O centauro sabia que, depois de matar a hidra, Hércules untara as pontas de suas flechas com o veneno do monstro, e que esse era um veneno tão potente, que também tornava venenoso o sangue daqueles que matava. A mentira que contou a Dejanira foi a maneira que encontrou para, mesmo depois da morte, conseguir vingar-se do herói.

Quando Hércules vestiu a túnica, sentiu-se como se tivesse entrado numa fogueira. Tentou livrar-se dela, mas o tecido se agarrava a seu corpo e arrancava pedaços de pele e carne. Sabendo que seu fim havia chegado, ele construiu às pressas uma pira funerária, deitou-se sobre ela e ordenou a seu escudeiro, o jovem Filoctetes, que a acendesse. A clava e a pele do leão de Nemeia queimaram junto com o herói, mas Filoctetes herdou o arco e as flechas, com os quais ainda teria um papel importante a desempenhar na Guerra de Troia, décadas mais tarde. Quanto a Dejanira, ao saber do acontecido, suicidou-se. Um final trágico bem ao gosto grego, sem dúvida - mas que não é realmente o final. A lenda conta que Zeus chamou seu filho para o monte Olimpo e fez dele um deus, e a verdade é que fé em Hércules nunca faltou: templos e monumentos dedicados a ele espalhavam-se não só pela Grécia, mas também pela Albânia, Bulgária, parte da Turquia, Sicília e sul da Itália - todas regiões que os gregos conquistaram. O culto de Hércules difundiu-se ainda mais durante o período romano, e continuaria popular até o advento do cristianismo.



…em um filme banal

Talvez o principal mérito de Hércules (2014, dirigido por Brett Ratner e estrelado por Dwayne Johnson no papel do herói) esteja em ter um roteiro original: os célebres Doze Trabalhos e outros feitos conhecidos de Hércules são apenas citados, e provavelmente é melhor assim. O filme já começa com uma bola fora, embora, na certa, pouquíssima gente tenha notado: a data mencionada é 358 a.C. - o que, para os padrões da História grega, já é uma época recente e bem documentada; os monstros fabulosos e os heróis sobre-humanos pertencem a um passado muito mais remoto e misterioso. Para dar uma ideia, 358 a.C. é apenas dois anos antes do nascimento de Alexandre, que, por sinal, acreditava ser descendente (bem distante) de Hércules, cuja lenda já era antiga em sua época. Os personagens Anfiarau (Ian McShane) e Autólico (Rufus Sewell) também declaram que "quem morrer a serviço de uma causa justa irá para os Campos Elísios, onde estão os grandes heróis, como Teseu, Odisseu e Aquiles"; como já vimos, Teseu era contemporâneo de Hércules, enquanto Odisseu (também chamado Ulisses) e Aquiles lutariam na Guerra de Troia, de modo que provavelmente ainda nem haviam nascido. Ou seja, a cronologia desse filme é digna do seriado da Xena.

A primeira cena do filme (sem contar os pequenos trechos de narração que a antecedem) é idêntica à de O Escorpião Rei (2002), primeiro filme a garantir a Johnson uma maior exposição como ator - ele ainda usava seu nome de lutador de wrestling, The Rock. A cena, aliás, já não era propriamente a coisa mais criativa do mundo, mesmo em 2002: o amigo/parente do herói está nas mãos de inimigos, prestes a ser morto ou coisa pior, quando O Cara em pessoa aparece para salvá-lo, sempre no último momento possível. A seguir, somos apresentados ao bando de Hércules, composto por personagens tirados de várias lendas diferentes, a maioria sem ligação com a dele. Conheço bem a história de Atalanta, mas sei pouco sobre Tideu (Aksel Hennie), e nada sobre Anfiarau ou Autólico. É claro que poderia fazer uma rápida pesquisa e reunir informação sobre todos, mas receio que este texto já vai ficar enorme sem isso (risos). Então, comento apenas que Tideu é citado na Ilíada como pai de Diomedes (nada a ver com o rei que tinha os cavalos comedores de gente; este Diomedes era um herói intrépido, que se destacou na Guerra de Troia), e tendo, ele próprio, praticado feitos notáveis durante o famoso episódio dos Sete Contra Tebas - ou seja, o Tideu original devia ser muito diferente do selvagem incapaz de falar, retratado no filme. Quanto a Atalanta, sua interpretação pela atriz norueguesa Ingrid Bolsø Berdal acrescenta uma bem-vinda dose de beleza, o que não faz mal a filme algum. De toda essa turma, o único a realmente ter ligação com Hércules é seu sobrinho Iolau (Reece Ritchie), que também se consagrou como herói em "carreira solo", embora, claro, sem nunca chegar aos pés do tio. Em todo caso, participou da caçada à hidra e de outras aventuras ao lado dele, lutando - não era uma espécie de relações-públicas, como mostrado no filme.

O enredo é simples. Hércules e esse grupo de companheiros ganham a vida como mercenários, e seu mais novo empregador é um certo lorde Cotys, da Trácia (John Hurt). Esse lorde está enfrentando uma guerra civil contra um líder rebelde de nome Rhesus, que, pelo que se diz, aterroriza o interior do país, matando e pilhando, à frente de um exército de centauros. O exército de Cotys sofreu grandes perdas, e, para repô-las, só há os novos recrutas - simples camponeses sem qualquer experiência militar. A tarefa de Hércules e seus amigos consiste em treinar esses homens e depois comandá-los na campanha contra Rhesus. Enquanto a história vai sendo contada, pistas vão surgindo sobre o passado do herói, principalmente sobre o episódio triste e traumático da morte de Mégara e dos filhos - que, só para dar uma dica, não é exatamente como na lenda. Mais: também vão aparecendo as evidências de que, embora Hércules seja, sem dúvida, um dos guerreiros mais poderosos do mundo em seu tempo, pode ser que nem tudo o que se conta sobre ele seja bem como dizem. Isso levanta a indagação que talvez seja o ponto central do filme: o que faz de alguém um herói? Poder ou espírito? A dimensão de suas façanhas, ou a coragem necessária para realizá-las? Junto com isso, o desenrolar dos acontecimentos vem mostrar que a situação na Trácia é um tanto diferente do que a princípio parecia, o que irá exigir de Hércules e dos outros uma decisão difícil.

Quando Hércules acabava de estrear, li em algum lugar da internet um comentário que dizia que ele "desconstruía" a lenda, o que, na minha opinião, seria uma coisa idiota de se fazer. As lendas devem ser deixadas em paz. Entretanto, quando vi o filme, minha impressão foi bem diferente: Brett Ratner não realizou nenhuma grande obra, mas é inocente de qualquer intenção de "sabotar" a lenda de Hércules reduzindo-a a um punhado de fatos comuns. O recado que a produção procura dar é o de que o mais importante na lenda não são os detalhes fantásticos, mas a essência da história, aquilo que podemos aprender com ela. Não importa tanto se Hércules tinha a força de dez homens ou se não tinha, se ele enfrentou monstros fabulosos ou só ameaças naturais; aliás, não importa tanto nem mesmo se houve um Hércules de carne e osso ou se não houve. O importante é compreendermos que o heroísmo não reside em superforça nem em sangue divino, e sim em um determinado tipo de atitude diante de desafios ou situações adversas, quando uma pessoa está lutando por alguma coisa maior que ela própria. O heroísmo está acessível a todo ser humano, mas são poucos os que o alcançam, e, dos que alcançam, a maioria continuará anônima para sempre.

quinta-feira, setembro 25, 2014

Inverno do Mundo

Foi longa a espera pelo segundo volume da trilogia O Século, e, mesmo depois de o livro ser lançado, motivos diversos (leia-se: tempo escasso e livros que estavam na fila há muito tempo) fizeram com que eu demorasse a pegá-lo de fato, mas, uma vez que peguei, a leitura progrediu com uma velocidade que me surpreendeu, pois nunca fui um leitor rápido. A prosa de Ken Follett realmente transporta o leitor, e, se este for, além disso, um interessado em História, aí sim é que a "viagem" está garantida.

Diferente de Queda de Gigantes, no qual era difícil apontar um único personagem central, Inverno do Mun­do tem como protagonista Lloyd Williams, filho da ex-criada, depois jornalista, militante socialista e deputa­da Ethel Williams e (embora não saiba) do conde Edward Fitzherbert. Lloyd pensa que seu pai biológico morreu na Grande Guerra (que era como a Primeira Guerra Mundial era conhecida então), e, no que lhe con­cerne, o único pai que conhece, e a quem adora, é Bernie Leckwith, também um militante socialista, com quem Ethel se casou quando ele era pequeno. Lloyd vive no East End, a parte proletária de Londres, com a mãe, o pa­drasto e a meia-irmã, Millie. Porém, a história começa de fato em Berlim, onde Walter Von Ulrich e Maud Fitzherbert (agora Maud Von Ulrich) vi­vem com seus filhos pré-adolescentes, Erik e Carla. O ano é 1933, e o NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Ar­beiterpartei)  o Partido Nacional-Socialista dos Traba­lhadores Alemães, popularmente conhecido como Par­tido Nazista – está ganhando poder e apoio popular num ritmo assusta­dor. Assustador, claro, para gente como Walter, Maud e seus amigos, que valorizam a paz e a demo­cracia e sabem até onde uma ideologia ex­tremista como a dos nazistas pode levar uma nação. Já para grande parte da população da Alemanha, os na­zistas são os heróis que devolveram ao país uma aparên­cia de ordem, elimi­nando o desemprego e pondo fim ao caos econômico que se seguiu à derrota na Grande Guerra. Adolf Hitler, re­cém-nomeado chanceler, e seus correligionários, agora têm em mira outra ambição: a aprovação da Lei Ple­nipotenciária, que dará ao Partido o poder de baixar novas leis e decretos sem precisar da aprovação do Rei­chstag, o Parlamento alemão. E estão em meio a uma furiosa campanha para isso quando Ethel chega a Ber­lim, acompanhada do filho Lloyd, de 18 anos, a convite de sua grande amiga Maud, para proferir uma sé­rie de palestras e colher dados para um livro que está escrevendo, e que espera que sirva para alertar a po­pulação dos outros países europeus contra a perigosa sedução do nazifascismo.

Essa primeira parte do livro pinta um quadro atordoante do que era a sociedade alemã naqueles dias, quando os membros do Partido Nazista podiam fazer o que quisessem, enquanto os não-membros eram praticamente párias. A SS – Schutzstaffel ('Tropa de Proteção', uma organização paramilitar ligada ao Partido) tinha os mes­mos poderes que a polícia regular, poderes esses dos quais muitos de seus integrantes abusavam cons­tantemente, prendendo, espancando e às vezes matando qualquer um de quem não gostassem. Quem ousas­se con­testá-los tornava-se um "inimigo do Estado", e sua vida, a partir daí, não valia mais nada.

Aos fatores políticos, sociais e econômicos, estava-se juntando na época uma série de noções "científicas" de­rivadas de uma interpretação distorcida da teoria de Darwin. Agremiações como a Sociedade Thule e outras menos famosas postulavam a superioridade da "raça ariana", à qual pertenciam os alemães "puros", e prega­vam que essa raça tinha tanto o direito quanto o dever de proteger-se da "contaminação" trazida pela misci­genação com outras – sendo que alguns grupos étnicos eram bem mais execrados que outros. O sentimento antissemita já existia entre os alemães (como, de resto, entre outros povos) há séculos, e sua origem não é fá­cil de rastrear; existem aí componentes históricos, religiosos e de outros tipos. Como a Sociedade Thule tinha estreitas ligações com o NSDAP – ou, melhor dizendo, o NSDAP foi mais ou menos apropriado pela Thule, passando a atuar como seu braço político –, não deve surpreender a ninguém que o Partido tenha-se aprovei­tado da antipatia que muitos alemães já nutriam contra os judeus e açulado a opinião pública contra eles, usando-os como bode expiatório para todo o sofrimento que a Alemanha tinha enfrentado desde a derrota em 1918. Hitler, brilhante orador que era, e apoiado por uma gigantesca máquina de propaganda, convenceu a opinião pública alemã de que a coalizão de nações que havia vencido a Grande Guerra era controlada por uma conspiração judaica que visava destruir a Alemanha. Além disso, conseguiu que os alemães partilhassem de seu sonho megalomaníaco de uma "Grande Alemanha", que, além do povo alemão propriamente dito, en­globaria as populações de língua e etnia germânicas espalhadas por vários países da Europa. Para isso, a Alemanha precisava do que os intelectuais nazistas chamavam de Lebensraum ('espaço vital'), o que, segundo a propaganda oficial, justificava a invasão de países vizinhos – outra ideia que Hitler e a mídia a seu serviço conseguiram que a maior parte da população alemã comprasse.


Com a ascensão dos nazistas ao poder, o significado de "democracia" virou uma simples lembrança na Ale­manha. Quem ainda não tem muito conhecimento da matéria pode ficar confuso com o fato de que uma ideo­logia de extrema direita como a do NSDAP pudesse se intitular Nacional-Socialismo; acontece que os nazis­tas atribuíam à palavra "socialismo" um significado totalmente diferente do que conhecemos. Para eles, esse termo queria dizer que a sociedade – Estado, nação, coletividade – devia ter prioridade absoluta, enquanto os direitos e interesses dos indivíduos ficavam em segundo plano, ou nem isso. Enfim, o "socialismo" de Hi­tler e seus companheiros era, no fim das contas, uma das formas daquilo que passaria à História com o nome de totalitarismo. E totalitarismo, como se sabe, pode ser de direita ou de esquerda, tanto faz – e nunca resultou em bem para as pessoas comuns.

É mais ou menos o que Lloyd Williams descobre ao alistar-se como voluntário para lutar na Guerra Civil Es­panhola (1936-1939), conflito que historiadores consideram um dentre vários "prelúdios" que antecederam a Segunda Guerra Mundial propriamente dita. Essa guerra estourou, basicamente, porque a Espanha, na época dando seus primeiros passos como país republicano, havia eleito um governo de esquerda, o que os fascistas do país não aceitaram. O conflito, então, envolvia as tropas leais ao governo socialista, de um lado, e rebeldes de direita do outro. Na prática, foi uma "guerra por procuração", pois, enquanto a Alemanha nazista de Hitler e a Itália fascista de Mussolini forneciam armas, suprimentos e treinamento aos rebeldes, a União Soviética fazia o mesmo pelas tropas do governo. Enquanto durou a guerra, muitos voluntários vindos de vários países se apresentaram – "lutar na Espanha" foi muito romantizado, era visto como o ato supremo de idealismo por muitos jovens, e outros nem tão jovens assim, que viviam o sonho do socialismo. Só para dar um exemplo, um desses voluntários foi o inglês Eric Arthur Blair, mais tarde imortalizado com o nome de George Orwell, que retratou a guerra em Homage to Catalonia (publicado no Brasil como Lutando na Espanha), um de seus livros mais aclamados.

Na Espanha, Lloyd não demora muito a perceber que a realidade da guerra é muito diferente daquilo que sua jovem cabeça idealista imaginava. Como se não bastasse o terror dos sangrentos combates, ele é defrontado com a irracionalidade da máquina bolchevique: os soviéticos, de cujo apoio ele e seus companheiros dependem, estão acorrentados a uma burocracia estatal que é um verdadeiro monstro. O ditador Josef Stalin é vis­to como uma espécie de deus, cegamente obedecido em qualquer circunstância, mesmo que todos estejam vendo que suas decisões são erros desastrosos. Pessoas sem preparo são colocadas em cargos importantes, unicamente por sua lealdade a Stalin e ao Partido Comunista. Todos são obrigados a prender-se a uma infinidade de regras inflexíveis, das quais não é permitido desviar-se um milí­metro sequer, não importa que isso custe vidas humanas. Ao menor sinal de qualquer comportamento não ortodoxo, a pessoa passa a estar na mira da NKVD, a temida polícia política russa, que, é claro, estende seus tentáculos a qualquer lugar onde os interesses da União Soviética estejam em jogo, como era o caso da Espa­nha naqueles dias. E estar na mira da NKVD significa, na melhor das hipóteses, ter toda a vida minuciosa­mente investigada e seus segredos mais íntimos irem parar numa pasta de arquivo; na pior, significa tortura e morte. Isso faz nosso herói com­preender que nenhum tipo de extremismo irá criar um mundo melhor, e o leva a concluir que o comunismo deve ser combatido com o mesmo afinco que o nazismo. Isso irá influenci­á-lo mais tarde, quando, a exemplo da mãe, torna-se deputado na Inglaterra, alinhado com os socialistas mode­rados.

Também é na Espanha que Lloyd conhece o tenente Vladimir "Volodya" Peshkov, um jovem oficial do Exérci­to Vermelho que, como ele, chama de pai alguém que não é seu pai biológico – mas, diferente de Lloyd, Vo­lodya não sabe disso: acredita ser mesmo filho de Grigori Peshkov, agora um importante general, que foi quem o criou. Na verdade, Volodya é o filho que Lev, irmão de Grigori, deixou na barriga da namorada ao sair às pressas da Rússia, no já distante ano de 1914, fugindo da polícia. Grigori casou-se com Katerina, a mãe de Volodya, e os dois têm uma filha, Anya. Lev, por sua vez, radicou-se nos Estados Unidos, onde casou-se com Olga Vyalov, filha de um gângster russo, e, graças a sua muita astúcia e poucos escrúpulos, ampliou e diversificou os negócios herdados do sogro; agora, é muito mais rico e muito mais temido do que o velho Josef Vyalov alguma vez foi. Com Olga, Lev teve uma filha, a linda Daisy, agora uma socialite cabeça-oca; com uma de suas amantes, teve um filho, Greg, um rapaz ambicioso, que admira o pai, de quem herdou a astúcia. Cir­culando em meio à alta sociedade da cidade de Buffalo, no estado de Nova York, Daisy e Greg convivem com muitos outros jovens de famílias influentes, entre eles os irmãos Woody e Chuck, filhos do agora senador Gus Dewar. Enquanto Woody sem­pre quis seguir os passos do pai na política, Chuck deseja entrar para a Mari­nha.

Só por esse parágrafo, já deve ter dado para sentir o impressionante entrelaçamento de vidas e destinos cria­do por Ken Follett. Caramba, chega a ser difícil dar uma breve ideia geral do enredo do livro, pois falar de um personagem me obriga a falar de outro, e assim vai! É verdade que Follett, por vezes, recorre a coincidências improváveis, estilo Jane Eyre, mas, ainda assim, não dá para não admirar a engenhosidade com que ele ar­quiteta toda essa trama, conseguindo fazer com que haja sempre um personagem no lugar certo e na hora certa para lhe permitir abordar um acontecimento histórico importante. O que achei discutível, em contra­partida, foi a op­ção do autor por aumentar o número de páginas dedicadas aos dilemas pessoais (geralmente amorosos) dos personagens, em relação ao volume anterior. Compreendo que, para que se tenha uma obra de ficção históri­ca, é preciso ter personagens vivendo o momento dos acontecimentos apresentados, e que, para que haja per­sonagens, tem que haver também um background e problemas particulares para cada um deles – só fiquei um pouco decepcionado ao ver que namoros, casamentos e desilusões acabaram ocupando tanto espaço, que vários eventos importantes ou significativos da guerra, ou ligados a ela, ficaram sem ao me­nos uma menção. Posso citar, entre outros exemplos, a Noite dos Cristais, em 09 de novembro de 1938, tal­vez o primeiro regis­tro de uso de violência em caráter oficial e em grande escala, pelo governo nazista, contra os judeus; a Guerra de Inverno, entre o final de 1939 e o início de 1940, entre União Soviética e Finlândia – é interessante lemb­rar que os soviéticos só puderam dar-se ao luxo de travar essa guerra porque ainda estava em vigor o pacto de não-agressão com a Alemanha; ou o heroico episódio do Levante de Varsóvia, em 1944, no qual civis polo­neses, armados com o que puderam encontrar, lutaram nas ruas contra o bem-treinado e bem-equipado exército alemão a fim de tentar libertar sua cidade da ocupação nazista. Follett silencia total­mente sobre tudo isso – e deve haver muito mais, pois não tenho a pretensão de conhecer tudo sobre a guerra.


Por outro lado, o autor merece aplausos por não perpetuar aquela visão simplista que pinta a Segunda Guerra Mundial como uma luta entre o "bem" e o "mal", e por desconstruir alguns mitos hollywoodianos sobre ela. Alguns poderão achar chocante saber que a Alemanha, no início, limitava seus ataques aéreos à Inglater­ra a alvos militares, e que, quando começou a lançar bombas sobre áreas residenciais, foi como re­presália, pois os ingleses fizeram isso primeiro nas cidades alemãs. E essa tática fazia parte de uma estraté­gia cruel: como um personagem do livro explica a outro, a Inglaterra fazia pouco progresso na guerra ao bombardear indústrias na Alemanha, pois os alemães simplesmente as reconstruíam. Surtia muito mais efeito bombarde­ar os bairros onde se concentravam as moradias da classe operária, já que os trabalhadores mortos não podi­am ser substituídos com a mesma rapidez que prédios ou máquinas. Aterrador.

Se formos falar em mitos hollywoodianos sobre a Segunda Guerra Mundial, não há como negar que o maior deles diz respeito à relevância geral da participação norte-americana no conflito. Quem assiste aos filmes que andam por aí fica com a impressão de que os ianques foram a força vital que possibilitou a vitória dos Alia­dos, e de que os outros foram meros coadjuvantes. Por estranho que pareça em face do que foi dito poucos parágrafos acima, a realidade é que, se hoje não vivemos num mundo moldado pela ideologia nazifascista, devemos isso aos comunistas: entre os Aliados, a União Soviética foi, de longe, o país que mais fez pela vitó­ria, e também o que mais sofreu com a guerra. Há sempre dois lados na moeda, porém: os soviéticos eram combatentes corajosos, mas, ao invadirem a Alemanha, semearam o terror entre a população local com estu­pros e saques – e o pior, eram estimulados a isso pela propaganda oficial soviética, que os incitava a se "vingar" pelo que os alemães tinham feito à Rússia, como se as pessoas comuns da Alemanha fossem culpa­das. Ken Follett mostra essa realidade também.

Tirando o excesso de romance, como dito acima, Inverno do Mundo é uma digna continuação para a trilogia O Século, iniciada de forma tão magistral com Queda de Gigantes. Fico imaginando como será o próximo e último volume, A Eternidade por Um Fio, que, segundo as informações, tratará da Guerra Fria – um desdob­ramento natural da corrida armamentista entre Estados Unidos e União Soviética, cujo início é mostrado em Inverno do Mundo. Talvez esse terceiro livro não seja tão emocionante quanto os dois primeiros, já que pro­vavelmente não envolve combates propriamente ditos, mas tem tudo para ser tenso e cheio de intriga. Vamos aguardar.

sexta-feira, agosto 29, 2014

Supernatural: Nunca Mais

Supernatural, criada por Eric Kripke, é uma de minhas séries de TV preferidas. Bem, na verdade nunca a assisti na TV realmente: tenho as oito primeiras temporadas em DVD (a nona está atualmente sendo exibida nos Estados Unidos), e Cintia e eu costumamos comentar, ao terminarmos de assistir a um episódio especialmente eletrizante e de final inconclusivo, sobre a tortura que deve ter sido para os telespectadores ter que esperar uma semana pela sequência – ou pior, vários meses até o início da temporada seguinte. Melhor assistir em DVD mesmo!

A série criou um mundo interessante. Em linhas gerais, ele se parece muito com o nosso, mas com algumas diferenças notáveis. Nesse mundo, existem homens e mulheres (embora elas sejam minoria) que se intitulam simplesmente "caçadores", e dedicam a vida a rastrear e eliminar todo tipo de seres sobrenaturais malignos (ora, agora é que me dei conta: Salomão Kane é um caçador do século XVII!). Pelo que a série dá a entender, ninguém se torna um caçador por opção: todos parecem ter abraçado a carreira depois de perderem um ou mais entes queridos, vitimados por alguma coisa tenebrosa que qualquer pessoa racional diria que não existe… O que dá uma boa medida do quão pouco as pessoas racionais sabem sobre o mundo.

Os protagonistas são os irmãos Dean e Sam Winchester, que não se tornaram caçadores – foram criados nessa vida. Ainda muito pequenos, perderam a mãe, assassinada por um demônio. Desse dia em diante, John, pai dos meninos, dedicou-se a perseguir a coisa que matou sua esposa. Procurou por caçadores mais experientes e aprendeu com eles tudo o que pôde. Adotou um modo de vida seminômade, percorrendo os Estados Unidos de um lado a outro, indo aonde quer que uma pista o levasse, e sem se limitar a caçar seu próprio inimigo: esforçou-se para destruir o mal onde quer que o encontrasse. Sam e Dean cresceram na estrada, mudando-se constantemente, trocando de escola a cada poucos meses, e muitas vezes tendo que se cuidar sozinhos durante muitos dias, enquanto o pai caçava. Aprenderam a lutar, a atirar e a pesquisar sobre ocultismo numa idade em que outros garotos só se preocupavam em treinar manobras de skate. Porém, serem criados da mesma maneira não apagou o fato de que os dois irmãos têm personalidades muito diferentes. Dean, apesar de disciplinado e focado no dever quando o assunto é a caça, é boa-vida e mulherengo, apaixonado por cerveja e rock clássico (a excelente trilha sonora é um dos pontos fortes da série); idolatra o pai e obedece sem hesitar a qualquer ordem dele, quer a entenda ou não. Sam, por outro lado, é introspectivo e estudioso; sempre sonhou em ter uma vida normal, e, por isso, cresceu nutrindo um certo ressentimento contra John por tê-lo criado como caçador.

Os caçadores têm uma rede de contatos eficiente, cada um deles conhecendo ao menos um punhado de outros, mas costumam agir sozinhos, cooperando entre si apenas ocasionalmente, em geral quando algo especialmente grande e perigoso assim exige. Sam e Dean, entretanto, caçam juntos, por uma série de motivos, a acentuada atitude de galinha choca de Dean em relação ao irmão caçula não sendo o menor deles: acostumado a cuidar de Sam desde que este era um bebê (apesar de ser apenas quatro anos mais velho), esse é um hábito com o qual ele não consegue mais romper.

A ação de Nunca Mais, primeiro romance da franquia Supernatural, escrito por um certo Keith R. A. DeCandido, transcorre em novembro de 2006; portanto, cronologicamente, a história pertence à segunda temporada da série. John Winchester morreu há pouco tempo, e os rapazes ainda lutam para se acostumar com o fato. Dean sente uma óbvia falta da presença e da liderança do pai, enquanto Sam se arrepende das brigas que teve com ele e pergunta-se se foi, realmente, o melhor filho que poderia ter sido, mesmo naquelas circunstâncias. Principalmente, paira sobre os dois a sombra das terríveis últimas palavras de John, dirigidas apenas a Dean, que agora se debate na dúvida entre contar ou não ao irmão: o pai lhe disse que ele deve salvar Sam – e que, se não conseguir salvá-lo, deve matá-lo. Isso revelou que John tinha conhecimento, ao menos parcial, de algum terrível segredo ligado ao destino de Sam, e do qual nunca havia falado até pouco antes da hora da morte, e agora, o que quer que ele soubesse sobre o assunto foi para a pira com ele. Exceto essa dica inquietante.


As coisas estão nesse pé quando Dean recebe uma ligação de Ellen Harvelle, uma velha amiga de John e proprietária da Roadhouse (traduzido como Bar da Estrada na dublagem brasileira), lugar onde caçadores se reúnem. Ela administra o bar com a filha, Jo, e com a ajuda ocasional, relutante e capenga de um cara conhecido como Ash, um gênio da informática para quem "alguma coisa não deu certo" na vida. E é a Ash, indiretamente, que diz respeito o motivo do telefonema. Um amigo dele relata estar tendo problemas com um banshee (espírito feminino do folclore irlandês, facilmente identificável por seus gritos agudos e chorosos, e cuja aparição costuma prenunciar a morte de alguém) e pede ajuda. Assim, Sam e Dean tomam o rumo da cidade de Nova York, onde mora o tal amigo, um sujeito chamado Manfred Afiri. Sam planeja aproveitar a viagem para investigar outros fatos estranhos ocorridos há pouco na cidade, aparentemente sem ligação alguma com o banshee de Afiri: numa das ocorrências, dois estudantes universitários foram espancados até a morte por um orangotango (!); na outra, um homem foi emparedado vivo e encontrado dias mais tarde, já morto, naturalmente. Mais culto que o irmão, Sam percebe que os dois eventos recriam situações descritas em contos do célebre (e novaiorquino) Edgar Allan Poe: Os Assassinatos da Rua Morgue e O Barril de Amontillado, respectivamente. Poderia ser obra de um serial killer maluco, o tipo de coisa que é trabalho para a polícia, não para caçadores – mas quantos serial killers têm orangotangos como comparsas? O animal pertencia a um zoológico de Nova York, de onde não teria qualquer possibilidade de escapar sozinho; portanto, alguém o tirou de lá, e, o que é mais surpreendente, encontrou um meio de controlá-lo para fazer com que praticasse o ato de violência, já que os orangotangos, embora fortes, são, no seu normal, animais tímidos, que mais provavelmente fugiriam de seres humanos em vez de atacá-los. Os irmãos decidem, então, dar uma olhada, para ver se há algo que possam fazer, e descobrem que os assassinatos parecem estar ligados aos diversos estágios de um ritual oculto que supostamente poderia ressuscitar os mortos, o que leva à conclusão de que deve haver um fã alucinado de Poe tentando trazer seu ídolo de volta à vida.

(Para quem não fez a ligação, a dica de que Edgar Allan Poe tem algo a ver com a história está no próprio título: Nunca Mais era a sentença que o corvo não cansava de repetir, no mais famoso poema do mestre. Quoth the raven, "Nevermore".)

Até chegar mais ou menos à metade do livro, eu pensava em escrever no comentário que o principal problema com Nunca Mais era a demora da história para decolar. Se eu de fato o fizesse, isso acabaria por nos induzir a considerar uma série de coisas como atenuantes para o autor. Por exemplo, é preciso lembrar que, se adaptar um livro para transformá-lo em filme é tarefa complicada, fazer o inverso também não deve ser nada fácil. É verdade que não estamos falando de uma adaptação de fato, já que Nunca Mais é uma história original, mas quem está acostumado ao ritmo dos episódios de Supernatural fatalmente achará esta narrativa arrastada demais. Um roteirista, ao adaptar um livro para a tela, precisa limar tudo o que não for essencial, por mais que isso lhe doa no coração – e na certa vai doer, se ele for um fã do autor. Já um escritor que esteja criando um romance ambientado num mundo tirado do cinema ou da TV, tem a liberdade de fazer o contrário: ele pode acrescentar detalhes, explorar a parte psicológica dos personagens, aprofundar pontos que só eram tratados de forma superficial, e muito mais. Empolgante? Sem dúvida. Porém, esse escritor necessita de uma grande dose de bom senso para decidir quando e, principalmente, como fazer uso dessa liberdade. Cito dois exemplos, um do que fazer e um do que não fazer, ambos tirados de Nunca Mais: ao hospedar-se na casa de Manfred – um "dinossauro" do rock, que esteve em Woodstock e canta numa banda cover , Dean fica maravilhado com a coleção de discos que o cara tem, o que abre espaço para várias menções interessantes sobre música. Isso é legal! Já em outro momento, DeCandido faz questão de nos atormentar durante quase uma página inteira com a rica e pormenorizada descrição das agruras enfrentadas por Sam e Dean durante sua árdua busca por uma… vaga para estacionar. Isso não é legal. Sabemos que, num romance escrito sob encomenda, como é o caso deste, o editor costuma estipular um número de páginas que o autor é obrigado a atingir, mas, a meu ver, qualquer fã de Supernatural deveria facilmente conseguir pensar em vários jeitos mais interessantes de encher linguiça do que esse.

Porém, "demorar a decolar" não é o maior problema de Nunca Mais – antes fosse. Para falar francamente, o livro não decola em momento algum. A ideia de uma trama de mistério envolvendo as histórias de Edgar Allan Poe poderia dar um resultado magnífico, se bem aproveitada, mas, infelizmente, o que encontramos nestas páginas é um enredo fraco e pobremente desenvolvido, narrativa tosca, nenhum aproveitamento do vasto potencial dramático dos personagens, e um desfecho digno de um episódio (ruim) de Scooby-Doo. Como se fosse para não destoar da baixa qualidade do texto, a tradução é horrível. Muitas passagens parecem ter saído direto do Google Translator, sem direito a uma revisão elementar. O problema mais comum é o excesso de literalidade: os leitores familiarizados com a língua inglesa reconhecerão um sem-número de estruturas frasais típicas dela, e que ficam bem num texto em inglês, mas que, na tradução, deveriam ter sido adaptadas, pois, do jeito que ficaram, soam forçadas, artificiais. E não é só na estrutura das frases que isso acontece: muitas vezes a própria compreensão do que está sendo dito ficou comprometida. Exemplo: na linguagem coloquial/chula falada nas ruas norte-americanas, é comum, quando um sujeito quer mandar outro às favas, dizer "suck me", ou, mais explícito ainda, "suck my cock" – mas isso só funciona porque os falantes dessa linguagem coloquial/chula decidiram, sabe-se lá por que, estabelecer uma convenção que determina que "suck me" equivale a "vá às favas". Em português, essa convenção não existe, de modo que a tradução literal de "suck me" ('me chupa') fica parecendo simplesmente um convite para sexo gay. O sentido da expressão original seria muito melhor mantido com o uso de um singelo "vá se foder". Por mais curioso que pareça, muitas vezes uma tradução é mais fiel quando menos literal.

Outro detalhe bizarro a título de curiosidade: na grande maioria das vezes em que um dos Winchester vai agradecer a alguém, ele, por algum motivo, diz "obrigada" em vez de "obrigado". Como um mesmo erro pode aparecer tantas vezes num texto e, mesmo assim, escapar da revisão, é coisa que não ouso tentar responder. E esse é apenas o exemplo mais gritante entre muitos.

Por mais que a perspectiva de curtir uma aventura inédita dos irmãos Winchester fosse tentadora, e ainda mais sendo numa mídia diferente daquela em que estamos acostumados a vê-los, Nunca Mais acaba se mostrando um daqueles livros que, quando a gente termina de ler, pensa que gostaria de tê-los pego emprestados com alguém, pois ficam longe de valer o que gastamos com eles – ou de merecer o espaço que vão ocupar na nossa estante. Há outros romances da franquia com lançamento já previsto, e eu torço fervorosamente para que os próximos autores se saiam melhor que DeCandido, e para que a editora Gryphus cuide mais da qualidade da versão brasileira. Os fãs de Supernatural merecem.

domingo, julho 06, 2014

As Fabulosas Aventuras de Salomão Kane

Você, jovem leitor do século XXI, acostumado a entrar em qualquer livraria e encontrar uma fartura de títulos de fantasia para escolher, não tem como imaginar o que era a vida de um fã do gênero no Brasil durante os anos 80 e primeira metade dos 90. O "raciocínio" dos editores da época era o de que, como essas histórias com dragões, elfos e magos eram uma coisa tão distante do cotidiano dos brasileiros, os leitores em potencial não se interessariam por elas. (Pergunto: que espécie de mocorongo, ao escolher um livro de ficção, um livro para se divertir, deseja encontrar nele as mesmas coisas do cotidiano, coisas essas das quais já atura o suficiente  e, em geral, muito mais que o suficiente ― em seu próprio dia-a-dia?) E, como os editores achavam isso, os autores fantásticos estrangeiros eram muito pouco traduzidos ou publicados por estas paragens. Autores nacionais? Um brasileiro querendo escrever fantasia naqueles dias era mais ou menos como um filho de agricultores do interior gaúcho querendo ser astronauta.

Uma das poucas alternativas que tínhamos eram os livros importados ― e para quem, na época, ainda não lia em inglês, tinham que ser os importados de Portugal. Editoras como a Europa-América, que, já no próprio nome, demonstrava o objetivo de integrar leitores portugueses e brasileiros, eram meio que a nossa tábua de salvação. Graças a ela, pude ler as Crônicas de Dragonlance em 1992/93, vários anos antes de sua primeira edição brasileira, edição essa que, por tudo o que sabíamos então, poderia jamais sair. Mesmo em tempos mais recentes, depois de a literatura de imaginação ter finalmente conquistado espaço e visibilidade em nosso país, os livros portugueses continuaram a ser objetos de desejo, já que muitas obras famosas e/ou importantes que não encontramos em versões brasileiras estão disponíveis em edições de além-mar.

Eis aqui um exemplo: este volume das aventuras de Salomão Kane, herói criado por Robert E. Howard quatro anos antes que Conan aparecesse, foi publicado pela portuguesa Saída de Emergência (campeã indisputada no quesito Nome Mais Exótico) em 2005, ganhando mais tarde uma sobrecapa com a imagem do pôster do filme sobre o personagem lançado em 2009, estrelado por James Purefoy ― que, para mim, será sempre o Marco Antônio da série Roma. Note-se que o nome do personagem é grafado no livro como Salomão Kane, enquanto, na sobrecapa, aparece na forma inglesa, Solomon, tal como usado no filme. Usarei Salomão mesmo, tanto por causa do livro como pelo fato de meu primeiro contato com o personagem ter sido nas páginas d'A Espada Selvagem de Conan, que também grafava dessa forma.

E quem é Salomão Kane? Trata-se de um puritano que vive entre o final do século XVI e o início do XVII, tempos do reinado de Elizabeth I, tempos de Shakespeare e de Francis Drake, bem como de tantas outras personalidades e eventos da maior importância na história da Inglaterra. De modo especial, foi quando o Império Britânico viveu seu momento de maior ímpeto expansionista. "Puritano", aí, significa adepto do puritanismo, movimento religioso que se desenvolveu na Inglaterra, caracterizado por alinhar-se teologicamente com as igrejas protestantes, rejeitando tanto a doutrina católica quanto a anglicana, e por insistir na austeridade dos costumes, tanto que, hoje, é relativamente comum referir-se a qualquer pessoa que se conduza segundo uma moral rígida como sendo "puritana", sem que isso tenha necessariamente a ver com sua formação religiosa.

O interessante para nós é que Kane, em vez de ficar em sua nativa Devon e tornar-se um pregador, decidiu correr o mundo buscando "destruir o mal em todas as suas formas", o que geralmente significa matar monstros sobrenaturais. Por causa de tal temática, suas aventuras estão entre as histórias mais sinistras escritas por Robert E. Howard, revelando um interesse do autor pelo clima de terror, que mais tarde seria um pouco posto de lado, quando Conan se firmou como a mais popular de suas criações, e a que capitalizou a maior parte de seus esforços durante seus últimos anos de vida. Tenho a sensação de que, se Howard tivesse vivido mais algumas décadas, teria eventualmente retomado a linha mais sombria, fosse com Salomão Kane ou com outros heróis. Mas isso, infelizmente, ficará para sempre no terreno do "se".

Howard define Kane, na história A Lua de Caveiras, como "uma estranha mistura de puritano e cavaleiro, com um toque do filósofo antigo, e mais toques humanos do paganismo, embora a última asserção o tivesse chocado". Essa perfeita descrição do caráter do personagem permite, ainda, ler nas entrelinhas algo mais: Kane sempre gostou de lutar. O amor pela loucura da batalha, herança de seus ancestrais saxões, corre em suas veias, mas, ao mesmo tempo, tendo sido educado como cristão, ele aprendeu que a paz é preciosa. Assim, o nobre objetivo de exterminar o mal e proteger os inocentes ajuda-o a conciliar as coisas, tornando possível para ele saciar sua fome de luta sem ser torturado pela consciência. O que não quer dizer que ele não tenha seus conflitos: por mais que os críticos irritantes que gostam de malhar Howard se recusem a admitir, a verdade é que Salomão Kane está longe de ser um personagem raso.

Este livro reúne sete contos e um poema, originalmente publicados nas revistas pulp para as quais Robert E. Howard habitualmente vendia o que escrevia, mas que, de lá para cá, já apareceram em muitas compilações dirigidas aos fãs do autor ― em língua inglesa, é claro. Os contos O Chocalhar de Ossos e Asas na Noite, bem como o poema O Retorno a Casa de Salomão Kane, eu já conhecia d'A Espada Selvagem; Asas na Noite é provavelmente o melhor, tanto na ideia quanto no desenvolvimento, alternando momentos sinistros, épicos e trágicos ao narrar os esforços de Kane para defender uma tribo africana contra os ataques de uma raça de monstros alados. O Chocalhar de Ossos e A Mão Direita do Destino são magníficos contos de terror, sendo que, no segundo, cabe a Kane apenas o papel de testemunha ― e, creiam, ficou muito legal assim! A Lua de Caveiras é a história mais longa, talvez tenha sido tema da capa da revista por ocasião de sua publicação original, mas não é tão emocionante, chegando a deixar o leitor impaciente em algumas passagens. Ainda assim, vale a leitura, em especial por causa das partes que desvelam um pouco da história das eras antigas do mundo tal como imaginadas por Howard ― as menções a Atlântida e Lemúria configuram, ainda que de forma nebulosa, os conceitos da Era Pré-Cataclísmica na qual teriam lugar as aventuras do rei Kull, personagem criado em 1929 e que serviria de modelo direto para a criação de Conan, o Bárbaro, três anos depois. Kull teve apenas três histórias publicadas em vida do autor, todas mais ou menos no mesmo período em que saíram as aventuras de Salomão Kane (A Lua de Caveiras é de 1930).


A partir de A Lua de Caveiras, as histórias parecem formar uma sequência, coisa pouco comum na obra de Howard, que geralmente preferia escrever narrativas "soltas", sem se preocupar em seguir uma ordem cronológica. Desse conto em diante, o cenário é sempre o continente africano, que Kane desbrava sozinho, aparentemente sem outro objetivo a não ser obedecer a um impulso inexplicável que o faz ir sempre para o leste ― isto é, na direção do desconhecido, do inexplorado. Confesso que até pensei em criticar o fato de que os africanos nativos retratados nesta páginas parecem extremamente estereotipados, nada mais que a figura do "selvagem" tal como imaginada por europeus e norte-americanos com pouco ou nenhum conhecimento sobre os elementos humanos da África ― no máximo, há "bons" e "maus" selvagens. Mas optei por não fazer isso: quantos de nós podem dizer que realmente possuem um conhecimento ao menos razoável sobre as características e os costumes das tribos africanas? Mesmo para quem tenha interesse, essas não são informações de fácil acesso, nem sequer hoje, que dirá na época de Howard, então prefiro considerar que o cara fez o melhor que pôde.

Com Salomão Kane, Robert E. Howard conseguiu fundir, de forma eficiente, o terror e a aventura heroica, definindo um estilo muito pessoal, que se tornaria sua marca registrada e influenciaria muitos outros escritores ao longo das décadas seguintes. Ler As Fabulosas Aventuras… dá a fãs e não-fãs do autor a chance de compreender a tremenda injustiça do papel secundário ― na verdade, o semiesquecimento ― que foi o que restou aos outros heróis de Howard a partir do surgimento de Conan. Daí em diante, pouca gente quis saber deles, e, como os leitores não se interessavam, os editores, consequentemente, também não. Assim, Howard, que, como todo mundo, precisava ganhar o pão, teve que se curvar às exigências do mercado, de modo que, de 1932 até sua morte quatro anos depois, praticamente só escreveu sobre o cimério. Mesmo que, mais tarde, tenham sido resgatados, esses personagens e suas aventuras, ainda hoje, recebem muito menos atenção do que merecem, e é por isso que iniciativas como a da Saída de Emergência ao publicar este livro devem ser aplaudidas e prestigiadas. Quem achar, por favor, compre! Só assim podemos ter esperança de que tantos outros tesouros ocultos escritos pelo filho mais ilustre de Cross Plains possam continuar, aos poucos, vindo à luz.