segunda-feira, julho 18, 2011

O Último Reino

Gênero popular no exterior há muito tempo, a ficção histórica só começou a receber investimento digno de nota das editoras nacionais há alguns anos. Por menos que o hábito de ler seja difundido no Brasil, ao olho do "consumidor" tudo indica que o setor editorial viveu uma evolução: os editores parecem ter parado de publicar só o que eles "achavam" que venderia, e procurado saber o que o público queria ler. O preconceito (que eu já ouvi ser expresso até mesmo por pessoas de quem, considerando a cultura que obviamente possuíam, eu não esperaria isso) de que o brasileiro só quereria narrativas que tivessem a ver com seu próprio cotidiano, e não teria o menor interesse por histórias sobre a Antiguidade ou a Idade Média – períodos históricos que nosso país não viveu – parece estar, felizmente, acabando.

E nessa "fase de transição", nada melhor que apostar no mais seguro: publicar primeiro as obras dos monstros sagrados do gênero, os que já tiveram seu desempenho testado e aprovado nas livrarias gringas. Um destes é o britânico Bernard Cornwell, autor de uma celebrada trilogia sobre o rei Artur e também desta "pentalogia" (essa palavra existe?) intitulada As Crônicas Saxônicas, da qual O Último Reino é o primeiro volume, sobre mais uma invasão nas Ilhas Britânicas: desta vez, a dos vikings.

Talvez meus leitores já saibam isso, mas a história dessas ilhas foi feita de invasões. Não há registro de quando seus primeiros habitantes chegaram lá (na verdade, nem sequer é conhecida a identidade exata desses primeiros habitantes), mas depois, onda sobre onda, vieram pictos, celtas, romanos, saxões, vikings e normandos. Cada povo subjugou (ou tentou subjugar) seus antecessores e controlou as ilhas à sua própria maneira enquanto pôde. Em seu tempo, o rei Artur, ou quem quer que tenha sido a figura histórica que deu origem à sua lenda, tentou defender a Bretanha de modo a preservar o modo de vida que então existia nela, oriundo da miscigenação das culturas celta e romana. Os invasores que ele teve que enfrentar eram diversas tribos germânicas que costumavam ser designadas, de forma genérica, pelo nome da mais poderosa e numerosa delas: os saxões, originários da região nordeste da atual Alemanha.

Esses bárbaros já cobiçavam as terras da Bretanha há muito tempo, mas, enquanto ela foi uma província do Império Romano, de um modo geral o poderio militar deste último a manteve a salvo. Quando, em 410, Roma oficialmente retirou-se da Bretanha, a oportunidade há tanto aguardada pelos saxões parecia finalmente ter chegado. O interessante é que, apesar disso, uma invasão em grande escala só foi acontecer cerca de um século depois!... O porquê desse fato não é claro, já que uma das consequências da saída dos romanos foi a interrupção de qualquer registro histórico confiável, mas é inevitável concluir que, para terem conseguido defender-se sozinhos por todo esse tempo, os bretões devem ter tido uma liderança forte, capaz de pacificar os conflitos internos e unir o país contra o inimigo comum. É aí que entra Artur, tenha ele sido um homem ou vários, que a lenda aglutinou numa única figura.

Seja como for, quem quer que Artur tenha sido, o que quer que ele tenha feito, o dia dos saxões tardou, mas chegou. Entre os séculos VI e VII, eles ocuparam toda a atual Inglaterra; como os romanos antes deles, os saxões pouparam a maior parte da Escócia e da Irlanda, por serem de acesso difícil e aparentemente não oferecerem recursos naturais ou terras férteis em quantidade suficiente para recompensar o esforço da conquista – motivo pelo qual, ainda hoje, grande parte das populações desses países continua a falar línguas de origem celta e a cultivar tradições culturais desse povo.

Ao chegarem à Bretanha, os saxões já encontraram grande parte da ilha cristianizada devido à influência romana – um fato que rapidamente trataram de "corrigir" a fio de espada. Em poucas décadas, o paganismo germânico predominava de modo absoluto na ilha, ainda que por pouco tempo: o esforço conjunto de monges irlandeses e de novos missionários enviados de Roma foi gradualmente fazendo com que os saxões fossem abraçando o cristianismo. De modo que é num país basicamente cristão, na segunda metade do século IX, que vive o herói de O Último Reino: Uhtred, filho de Uhtred, um ealdorman (chefe) saxão.


E é esse país que hordas de vikings invasores, a maioria oriundos da Dinamarca, estão atacando. Por muito tempo a costa inglesa, assim como a de boa parte da Europa, já havia sofrido com as incursões piratas desse povo do norte, que combinava um gosto selvagem pela luta e pela carnificina com uma paixão pelo desbravamento – e, durante os últimos tempos, uma necessidade premente de expansão, já que a pouca terra fértil disponível em seus países gelados e montanhosos já não era capaz de sustentar sua população em crescimento. A diferença é que desta vez os homens do norte não iriam contentar-se em encher seus navios com o produto da pilhagem e ir embora: vinham para ficar, para tomar a terra e transformá-la em colônia sua. Era o ciclo se repetindo mais uma vez: os saxões, outrora invasores temidos, eram agora os habitantes estabelecidos na Inglaterra (nome esse, aliás, que o país havia ganho recentemente: vem dos anglos, outra tribo germânica que a invadira ao lado dos saxões) e precisavam defender-se contra novos invasores, tão brutais e sanguinários quanto eles próprios já tinham tido a fama de serem. E, embora os saxões, ao tempo em que invadiram a Bretanha romana, tivessem também outra fama, a de hábeis marinheiros (tradição que se perdeu com o tempo), os vikings os superavam de longe nessa parte: o mar era praticamente a vida deles. Seu tipo característico de navio, o drakkar ('dragão') era uma pequena maravilha de engenharia náutica: menor que os navios de outros povos da época, extremamente ágil e manobrável, capaz de navegar para a frente ou para trás, tinha no fundo achatado seu principal segredo, pois graças a ele gozava de extrema estabilidade (leia-se: era quase impossível virar um drakkar) e podia navegar até mesmo em águas muito rasas, o que permitia aos vikings subir rios com facilidade e desembarcar direto do navio para terra firme, sem necessidade de botes.

Quando a cidade inglesa de Eoferwic (que os romanos haviam antes chamado de Eboracum, e hoje tem o nome de York) é sitiada e invadida pelos dinamarqueses, Uhtred, o pai, tomba durante a batalha, e Uhtred, o filho, então com cerca de dez anos de idade, cai prisioneiro dos invasores. Um dos chefes vikings, Ragnar, simpatiza com ele e toma-o sob seus cuidados. Uhtred, que nunca recebeu muita atenção de seu pai verdadeiro, e não é, por natureza, muito propenso a qualquer tipo de lealdade, rapidamente toma gosto pelo modo de vida viking, afeiçoa-se ao pai adotivo e aos novos amigos que faz. E, acompanhando os nórdicos, é testemunha ocular da queda de três dos quatro reinos ingleses diante deles: Nortúmbria, Mércia e Ânglia do Leste, todas se rendem, entregando seus campos para serem tomados, as cidades para serem pilhadas, e o povo para ser trucidado ou escravizado. Até que só resta um reino que ainda resiste à sanha dinamarquesa: Wessex, governado primeiro pelo rei Æthelred e depois por seu irmão mais novo, Ælfred – que passaria à História como Alfredo, o Grande.

A região de Wessex, embora não mais seja um reino, ainda hoje conserva o mesmo nome, uma contração de West Saxons – os Saxões do Oeste. Parecia muito improvável que Alfredo algum dia chegasse ao trono, já que era o mais novo de seis irmãos, mas isso acaba acontecendo, e não pouca gente considera o fato um desígnio de Deus – o Deus cristão, que Alfredo cultua e que os dinamarqueses desprezam porque Seus mandamentos estimulam a piedade e a compaixão, que, para eles, são sinônimo de fraqueza. O primeiro contato que Uhtred tem com Alfredo não o impressiona muito: o então jovem príncipe parece ser um pateta que vive cedendo às tentações da carne para logo em seguida choramingar arrependido do pecado. Entretanto, o desígnio de Deus, se foi um desígnio, mostra-se acertado, pois, ao longo dos anos seguintes à sua coroação, Alfredo prova ser um líder sagaz, provavelmente o único dentre os reis possíveis que realmente tinha condições de frustrar o plano dos vikings de transformar a Inglaterra numa grande Dinamarca. Por esse tempo, Uhtred, já um jovem guerreiro, perdeu o pai adotivo dinamarquês, assassinado por um rival também dinamarquês, e acalenta o plano de vingá-lo e de recuperar o antigo domínio de seu pai verdadeiro, na Nortúmbria, agora nas mãos de um tio usurpador. Como um passo nessa direção, acaba pondo-se a serviço de Alfredo na luta contra os dinamarqueses (realmente, lealdade não é o forte desse sujeito), o que, embora ele não saiba, é apenas o começo de uma longa saga na qual não faltarão intriga, aventura e batalhas sangrentas.

Bernard Cornwell escreve magnificamente! Não deve nada a um Conn Iggulden, a um Steven Pressfield ou mesmo a uma Mary Renault, figuras coroadas da ficção histórica de língua inglesa. As Crônicas Saxônicas caíram do céu para quem tem curiosidade sobre a formação da Inglaterra moderna, mas ficava intimidado com o volume da informação, com a dificuldade de separar o essencial do secundário nos textos de História tradicionais, e com o conhecimento prévio que eles muitas vezes pressupõem – para não falar na necessidade de saber inglês. Apresentar fatos históricos usando-os como pano de fundo para a trajetória de um ou mais personagens fictícios é uma fórmula antiga, mas sempre foi e continua sendo eficiente, desde que o autor tenha duas habilidades em grau alto: a de um bom forjador de narrativas e a de um pesquisador, além do condão de fundir as duas coisas de forma convincente. E Cornwell passa no teste em todos os quesitos. Não acho que eu vá escrever um post sobre cada volume das Crônicas como fiz com O Imperador de Iggulden, mas que elas mereceriam isso, não há dúvida. Também há pouca dúvida de que terei coisas a dizer sobre outras obras do autor num futuro não muito distante. Por ora, adianto que As Crônicas Saxônicas pode ser amplamente recomendado a todos os leitores que se interessam pela cultura viking, pela história da Inglaterra e pelo mundo medieval de forma geral.

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