quarta-feira, agosto 11, 2010

Vlad: a Última Confissão

"(...) - Quanto ao contexto dos meus pecados, é simples. (...) Eu preciso governar.
- Você governa.
- Não. Eu me sento no trono. Ele está colocado no centro da terra mais sem lei do mundo. E fui colocado nele para mudar isso. Este é o meu kismet.
- Não conheço essa palavra.
- É uma palavra dos turcos. Uma tradução aproximada seria um 'destino inalterável'. Dado por Deus no nascimento. (...)
- Você está dizendo que não pode evitar o que faz?
- Sim.
- Este não é o ensinamento de nossa Igreja, de sua fé. Cada homem tem uma escolha, fazer o bem ou o mal.
- Então talvez eu tenha me desviado da Ortodoxa nesse ponto. Porque sei o que estou destinado a fazer e como fazê-lo. Não posso fazer outra coisa."

* * *

Vlad III Basarab (1431?-1476), príncipe da Valáquia, não é uma figura histórica como outras. É difícil obter alguma informação sobre ele além do que todo mundo sabe: que serviu de inspiração para que o escritor irlandês Bram Stoker criasse o mais famoso vampiro da literatura, Drácula. Experimentem uma busca rápida no Google com o nome dele, ou com qualquer de seus apelidos mais famosos, Vlad Tepes ou Vlad Drácula: praticamente só vão encontrar uma lista infindável de textos em sites sobre vampirismo, enfatizando o vasto derramamento de sangue que ele promoveu em sua terra (na época um principado subordinado ao reino da Hungria, hoje uma das províncias que formam a Romênia), e talvez mencionando o desconcertante fato de que, quando seu túmulo foi aberto, em 1933, só ossos de cavalo foram encontrados - o que, em se tratando de um homem sobre cujas supostas afinidades sobrenaturais já se cochichava desde quando ele era vivo, levantou as inevitáveis dúvidas sobre se ele teria realmente morrido, se, morrendo, teria permanecido morto, ou... Bem, vocês entenderam.

O que C. C. Humphreys faz neste livro é tentar encontrar o homem por trás do mito, reconstituindo a vida de Vlad desde sua juventude (boa parte da qual passada como refém dos turcos) para tentar entender os porquês de seus atos. Não há propriamente um juízo de valores nestas páginas, mas o autor consegue, sem formular a questão em termos explícitos, fazer com que o leitor se pergunte qual a explicação para que o mesmo homem considerado um herói em seu país (pois Vlad o é) seja visto no resto do mundo como um mero assassino psicótico que, para o azar da humanidade, herdou uma coroa e um trono, numa época em que os atos dos poderosos não eram contestados.

O romance começa em 1481, cinco anos após a morte de Vlad, quando o cavaleiro húngaro Janos Horvathy, ele próprio um membro da Ordem do Dragão (à qual também pertencia Vlad) chega à Valáquia com a missão de investigar e descobrir a verdade sobre o príncipe; se possível, tentar reabilitar seu nome, já que o excesso de sangue que manchou sua história acabou prejudicando a reputação dessa irmandade outrora venerável. Para tanto, ele reúne as últimas três pessoas vivas que privaram da intimidade de Vlad: Ion Tremblac, cavaleiro valáquio, que foi seu braço direito e melhor amigo; Ilona, amante do príncipe; e o ex-monge Vasilie, seu confessor. É através dos depoimentos deles que a extraordinária história de Vlad Drácula será recuperada.

A vida de Vlad desenrolou-se em situações limítrofes, tanto no tempo quanto no espaço. Em sua época, a Europa atravessava o traumático período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna - é possível que ele tenha sido testemunha ocular da queda de Constantinopla nas mãos dos turcos (1453), evento que, por convenção, costuma ser tomado como linha divisória entre as duas eras. Ao mesmo tempo, seu pequeno país estava cravado exatamente onde o Ocidente cristão encontrava o Oriente Médio muçulmano: onde dois mundos colidiam. E, a exemplo do que seus irmãos maometanos do norte da África - mouros, berberes - haviam feito na Península Ibérica séculos antes, os turcos do Império Otomano pretendiam agora expandir a influência do Islã pelo leste europeu. E a Valáquia estava em seu caminho.

O pai de Vlad, príncipe Vlad II, era conhecido tanto pela coragem em batalha quanto pela forma impiedosa como costumava tratar inimigos vencidos. E inimigos não faltavam, tanto externos - os turcos, cujo furor expansionista estava no auge nessa época - quanto internos: boa parte dos boiardos, isto é, dos nobres, não tinham nada contra cooperar com os invasores, desde que a margem de lucro fosse suficientemente alta, além de cobiçarem o trono e não recusarem qualquer ajuda para chegar a ele, viesse de onde viesse. Por sua participação na resistência contra o invasor muçulmano, Vlad II recebera do patriarca da Igreja Ortodoxa a alta honraria de ser nomeado membro da Draculea, a Ordem do Dragão, e por isso ficou conhecido como Dracul (dragão, em romeno), passando seus filhos homens a terem o direito de usar o epíteto de Dracula: os "filhos do dragão".

Vlad II acabou derrotado pelo sultão turco Murad na batalha de Galípoli, e, entre as concessões que teve de fazer, entregou os dois filhos mais jovens, Vlad e Radu, como reféns ao inimigo vitorioso, enquanto apenas o mais velho, Mircea, permanecia em sua companhia. O tratamento dispensado aos reféns segundo o romance faz lembrar o que os romanos davam aos filhos de chefes bárbaros sob sua tutela: confortos condizentes com sua posição social e, mais importante, a melhor educação possível - dentro da cultura do povo vitorioso, é claro. Vlad aprende várias línguas, poesia, literatura, matemática, além de ser iniciado naquela que se tornaria sua grande paixão, a falcoaria. Também estuda a fundo o Corão, o que não o leva a abraçar a fé islâmica, mas é de suma importância para que compreenda melhor os turcos, contra os quais não duvida em nenhum momento de que um dia terá de lutar. Até que um passo em falso dado por seu pai tem consequências terríveis: Vlad é transferido para a fortaleza de Tokat, onde amarga longas semanas num calabouço e depois é integrado à força a uma turma de estudantes que se dedicam a matérias bem menos edificantes que as que estudara até aí: métodos de tortura, alguns dos quais o jovem sente na própria pele. E é em Tokat que Vlad pela primeira vez vê um homem ser empalado, técnica que os turcos aprenderam com os saxões da Transilvânia e aperfeiçoaram.

Paradoxalmente, Vlad acaba contando com o favor de Murad para não só recuperar sua liberdade, como para conquistar seu direito: durante seu período como refém, seu pai e seu irmão mais velho haviam sido assassinados por uma liga de boiardos traidores, e aos 18 anos, à frente de um pequeno exército de valáquios fiéis e de tropas cedidas pelo sultão (que provavelmente imaginou que um príncipe coroado graças a sua benevolência se tornaria um fantoche útil), Vlad recupera o trono da Valáquia e senta-se nele pela primeira vez - ao longo de sua turbulenta carreira esse trono seria perdido e recuperado nada menos que três vezes. É só mais tarde, durante seu segundo e mais longo período de governo (1456-1462), que ele ganha a fama que o acompanharia até o túmulo e muito além: começa empalando os nobres que conspiraram contra seu pai e depois instaura a mesma pena para todos os crimes, de qualquer tipo, que venham a ser cometidos. Com isso, consegue transformar a Valáquia de uma terra sem lei, onde o enorme número de bandidos nas estradas havia inviabilizado o comércio, num país seguro e próspero, o que faz com que a população comum o veja com bons olhos. Isso, mais as diversas vitórias que obteve contra os turcos, mesmo em grande inferioridade numérica, valeu-lhe o status de herói nacional de que ainda hoje goza na Romênia. E no entanto...

É difícil separar fato de ficção em relação a qualquer vulto histórico, e talvez nenhum outro seja tão difícil nesse ponto quanto Vlad. Pode-se (e isso já foi feito) retratá-lo simplesmente como um patriota obstinado que desejava o melhor para seu país e para isso estava disposto a tudo - inclusive a atos brutais e chocantes - ou como um perfeito monstro, que se deliciava com o derramamento de sangue e aproveitava qualquer pretexto que se apresentasse para ordenar verdadeiros holocaustos. Os romenos gostam de acreditar que seu antigo príncipe sabia usar o terror como uma arma para alcançar objetivos válidos: punir com brutalidade exemplar qualquer criminoso apanhado era uma maneira de fazer outras pessoas pensarem mil vezes antes de cometer crimes, enquanto, para os soldados turcos, marchar por uma estrada ladeada pelos cadáveres empalados de centenas de seus camaradas era sem dúvida um golpe severo no moral, o que só podia beneficiar os valáquios. E, para quem quiser entrar nesse mérito, o que não farei aqui, é interessante lembrar que, além de todos os outros motivos de notoriedade, Vlad provavelmente foi o primeiro governante da História a ter o poder da imprensa mobilizado contra si: a então recente invenção de Gutenberg permitiu que panfletos narrando seus crimes fossem copiados aos milhares e amplamente distribuídos em vários países. Tenha isso sido um golpe de difamação orquestrado por seus inimigos, ou mero resultado do faro comercial de alguns indivíduos que perceberam que podiam lucrar com a curiosidade do público por histórias assustadoras (ei, isso não é uma maravilha? A imprensa marrom nasceu praticamente junto com a própria imprensa!), o fato é que fica praticamente impossível saber quanto do que dizem esses folhetos é verdade e quanto é fantasia.

Humphreys parece ser o tipo de escritor que gosta de personagens complexos e contraditórios, e soube fazer de "seu" Vlad um exemplo perfeito e completo disso: ora ele ganha nossa admiração, ora nos causa horror. As qualidades que o autor atribui ao príncipe são aquelas que já eram imaginadas por quem conhecia um pouco mais sobre ele do que apenas seus atos sanguinolentos: qualquer um que tenha tido a trajetória de vida que Vlad teve só podia tratar-se de um homem com uma vontade de ferro e uma coragem inabalável. Além disso, ele tem facetas diferentes: pode ser incrivelmente cruel, mas também gentil - enfim, é humano. E o melhor é que há no livro vários outros personagens fascinantes, além de uma narrativa vigorosa, envolvente, como há tempos eu não via. Pena que o autor ponha tudo isso a perder com um final que tenta ser surpreendente, mas só consegue parecer absurdo: no lugar de Humphreys, eu teria terminado o livro no capítulo 50, pois os dois últimos e o epílogo são um delírio só. Não que eu seja um daqueles chatos que ficam cobrando "verossimilhança" em obras de ficção (e Vlad: a Última Confissão é ficção, mesmo que baseada em fatos históricos), mas há ficções que convencem e outras que soam artificiais. Até o capítulo 50, o livro de Humphreys se enquadra no primeiro tipo; daí para diante, cai no segundo.